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Sonhos

Peter Rossi

Se me fosse dada oportunidade de voltar no tempo não tangenciaria, iria fundo.

Compraria todas as “caixinhas da sorte” e provaria a mim mesmo quanta sorte eu tinha, toda a sorte do mundo!

Estenderia a noite para que não acabasse e com o parar do relógio brincaria de polícia e ladrão na rua onde morava, por horas a fio.

Comeria todas as “marias moles” que pudesse, sem preocupar com calorias que não iria contar. Acamparia na sala, entre duas cadeiras e um lençol vivendo as maiores emoções da minha vida, tudo de novo, ou como diria o poeta, “tudo outra vez”.

Eu sentaria em frente à TV a assistir cada anúncio comercial: desejaria uma calça US-Top e cantaria a velha canção: “liberdade é uma calça velha, azul e desbotada”. Escovaria os dentes com o inesquecível gosto do creme dental Kolynos e sua bisnaga de um amarelo de doer.

Calçava o kichute, amarrando o cadarço até o tornozelo e com uma bola “dente de leite” faria aquele gol sensacional, que sempre tentei e nunca consegui.

Debruçado sobre uma mesa me lembraria que meus maiores heróis eram do futebol de botão. Tinham nomes de artista, eram coloridos e brilhantes, mas tinham medo os meus heróis. Goleiros de caixa de fósforos, bolas de botão de camisa, que apesar de costurados e recosturados com linhas das mais diversas cores, insistiam em cair. Queriam, todos eles, eu tinha certeza, na verdade ser uma bola prá viver o gol, não um simples botão, fechado numa casinha.

Andaria de bicicleta, minha Monark Aro 70, azul, brilhante, minha magrela de todos os tombos. Recolheria cada um deles, e guardava no bolso da “japona” prá usar em caso de emergência. Aliás, tombo lembra ardor de “merthiolate” e sopro de amor de mãe.

E, se ainda tivesse tempo – com certeza eu teria, comeria paçoca “Amor”, pipoca “Aritana” com um guaraná “Gato Preto”, geladinho, naqueles copos em que o canudinho vinha junto, pregado. Copos de plástico nos quais se deitam os gostos de todos os “Ki-Sucos”, “Tang’s” e gelatinas em pó “Royal”, impregnando nossa alma de carinho.

Minha tarde seria parcialmente consumida em organizar, uma a uma, e por ordem numérica todas as figurinhas repetidas do meu álbum “História Natural”. Perderia – na verdade ganharia – minutos inteiros admirando cada um dos calendários de mão da minha coleção. Limparia cada um dos meus chaveiros.

Gravaria, copiando da rádio, as melhores músicas, em fitas cassetes para ouvir no gravador portátil. 

Me divertiria com a merendeira e sua garrafa térmica da mesma cor, pequenininha, cabendo dois goles da mais profunda saudade.

Comeria açúcar, arroz, rapadura, linguiça. Abraçaria meus amigos queridos como já não abraço mais, me dando conta que não desaprendi, apenas perdi o bom hábito.

Enfiaria o dedo no disco do telefone e rodaria todos os números e numa gigantesca conferência diria a todos de minha infância que os amei, cada um ao seu modo, ao meu modo, no meu mundo.

E os livros então? “Essa é a nossa história”, “Reinações de Narizinho”, O Escaravelho do Diabo”, quantas viagens. Pegaria carona nessas nuvens de sonho e sonharia tudo outra vez. Tudo outra vez, como se vez alguma tivesse ocorrido. Não desceria do trem, encantado com o seu barulhinho repetitivo, pequenino, suave. Rosto fora da janela, janela fora do trem, trem fora da estação …

Escreveria canções de amor no caderno de caligrafia e ainda encontraria tempo para, resolvendo a tabuada, contabilizar em sorriso os amores que tive, pequenos amores, de um dia, de uma noite, de uma dança.

Lápis de cada cor, como me fascinavam – e ainda me fascinam. Correndo um atrás do outro, e deixando no papel o desenho da casinha, subindo montanhas, descendo outras, chegando até o sol, sempre amarelo ouro, com um sorriso nos lábios. O sol sempre sorria. Vinha depois da chuva, dos pés nas poças, do barro tingindo as meias brancas. Me dou conta de que todas as meias, na nossa infância, são brancas! Branco de envelope de carta no correio, sempre em folhas pautadas de “papel almaço” contando segredos que todos sabiam.

Ah, como eu voltaria, mesmo sabendo que meus braços cansados não abarcariam todas as imagens quietinhas no fundo das minhas retinas, algumas em preto e branco, é verdade, mas nítidas todas, brilhantes, pulsantes até. 

Eu daria todos os centavos do meu “Cofrenik” só prá rever os sonhos que pensei não ter realizado, mas que vivi intensamente …

 

Blogueiro

View Comments

  • Ah, com foi bom ter visitado essa página, que texto maravilhoso. Gostaria muito de saber escrever, colocando as palavras no devido local e tempo. Parabéns. Amei.

  • Peter,
    a cada texto uma lembrança guardada no fundo do nosso coração. Como é bom poder compartilhar memórias esquecidas tão essenciais nas nossas vidas.
    Parabéns
    Patrícia

  • Peter,como é bom receber os seus textos. !!!!!
    São memórias, lembranças de uma geração que vivenciou cada palavra compartilhada .
    Grata por compartilhar.

  • Eu volto no tempo com vc e pego a minha Monark Olé 70 vermelha... vamos desbravar um mundo enorme, sem precisar sair da cidade.

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