Como alguém consegue passar pela vida sem ler?
Fico me perguntando, sem a mínima pretensão de ser o dono da verdade.
Os tempos atuais e, principalmente, a imediatidade das decisões e a necessidade de que tudo ocorra na velocidade da luz, têm afastado os mais jovens das páginas dos livros.
Hoje existem livros eletrônicos. Melhor assim, pelo menos são livros. É certo que não possuem o passar das páginas e o ventinho no rosto, tampouco emanam o inesquecível cheiro de um livro de papel, mas, ainda assim, permitem ao usuário a mágica da leitura.
Me contaram que existem também os audiobooks, ou seja, livros que são lidos para nós. Não sei se me adaptaria pois, quando determinado parágrafo me toca o coração, acabo por lê-lo quatro ou cinco vezes.
É inexorável a mudança dos tempos e, com ela, o avanço tecnológico. Não podemos ser refratários a isso, pena de condenados sermos a viver como verdadeiros ermitões. No entanto, certos valores não podem nunca ser abandonados.
Sem a leitura, o mundo jamais chegaria até onde veio parar. Todas as instruções, de uma forma ou de outra, vieram transmitidas por códigos os mais diversos que haveriam de ser interpretados e, por conseguinte, lidos.
Foi assim em todas as épocas. Os homens primários deveriam saber ler o tempo, a hora do plantar e do colher. Deveriam ler o temor nos olhos dos dominados e evitar o ódio nos olhos dos dominadores.
Dizem que os animais sentem quando os tememos. Penso que eles leem em nossos olhos a insegurança. Enfim, nosso cérebro está condicionado a interpretar sinais gráficos e de imagens. Tudo isso, na verdade, representa a conjugação do mesmo verbo: ler!
Mas, falava dos livros. Esses companheiros inseparáveis. Ainda não li metade dos livros que tenho, essa é a verdade, e aí vão mais de quatro mil. Mas ainda assim, não me canso de querer tê-los. Eles funcionam pra mim como remédios, vacinas – ainda que não os use, tê-los à mão para um momento de emergência é confortável. São os alimentos que teimamos em deixar guardados nas dispensas, para uma ocasião futura.
Saber do lançamento de um livro e não correr para comprar é impensável, afinal a obra nasceu e como tal há de ser recepcionada, acarinhada, prestigiada. Um livro órfão de leitor deve ser uma das coisas mais deprimentes que se tem notícia. Não, mil vezes, não!
E as bibliotecas? Vamos falar sério? Tem coisa mais linda que uma biblioteca e todos os seus livros perfeitamente organizados? Se existir, são poucas as coisas. Aliás, organizar livros é uma tarefa para toda uma vida. Posso dizer que mais da metade da minha passei assim. E ainda passo.
A gente organiza por estilos de escrita, por nome do autor. Alguns, hoje em dia, organizam por cor e, confesso, ficam lindas as estantes. Eu prefiro o sistema tradicional: gênero e, dentro do gênero, o autor, em ordem alfabética. Simples e efetivo!
Mas aí novos livros são adquiridos, outros tantos recebidos de presente e a tarefa se perpetua – sigamos para a organização. Encaixa um aqui, muda outro de lugar. E, como as espessuras são as mais várias, fazemos muita ginástica em frente às estantes.
A leitura, ah leitura! Quanto já não se disse sobre as viagens que fazemos nas páginas de um livro, mas essa é uma constatação indiscutível. Lendo uma história, conseguimos ultrapassar fronteiras, burlando alfândegas e aduanas e, por imersão pura, chegamos aos mais variados trópicos e polos. Corremos o mundo todo e mais. Conhecemos também os mundos imaginários que, via de regra, são até mais interessantes. Vamos do inferno ao céu, sem falar numa breve passagem pelo purgatório, de mãos dadas com Dante. Enfrentamos inimigos ao lado de Cervantes. Vivemos dramas e traições pelas lentes de Shakespeare. Alcançamos o fundo da miséria humana com Dostoievisky. Aprendemos a beleza da simplicidade da vida com Manuel de Barros. Nos emocionamos com Mário Quintana, Adélia Prado, Cora Coralina e Vinícius.
Ao lado de Machado de Assis, percorremos as estreitas ironias da sociedade imperial brasileira e da imatura república.
E outros tantos são! Como não se maravilhar com as letras de Eça de Queiroz? Fernando Pessoa, esse ilustre observador da vida. O enigma que representa os parágrafos de Clarice Lispector.
Se quisermos voar outros ares e, momentaneamente esquecer esse mundo, melhor voar nas asas de Gabriel Garcia Marques. Se o interesse é a curiosidade natural da alma humana, visitemos Georges Simenon. E Kafka? Hermann Hesse? Meu Deus, como não lê-los?
Para que não digam que sou um saudosista, vale a lembrança recente de Carla Madeira e Itamar Vieira. São desenhos mágicos no papel, com pena e tinta, como fizeram Andrea Camilleri e Carlos Drumond de Andrade. As letras do cearense Belchior e do Paulo Vanzolini. E a finíssima ironia de Ariano Suassuna?
Com certeza deixei alguns mestres de fora, afinal, confessei desde o início que não dei conta de ler todos.
Além disso, sinto o comichão de escrever, esse não passa.
A essa altura da vida, confesso que tenho uma certa amargura. Queria ter me planejado melhor para ter mais tempo para ler. Ainda sou obrigado a enfrentar jornadas de trabalho, ao invés de sentar-me na varanda a contemplar a vida. Que pena! E a vida está mais próxima do fim, do que do começo.
Mas não adianta. O que preciso fazer é ler mais que nunca, mais que antes, mais que sempre. Todo tempo é pouco, todo momento é curto. A vida se fez assim. Obras que os grandes mestres talhavam em blocos de mármore anos a fio, que até hoje nos encantam, hoje são construídas, em minutos, por impressoras 3-D. O homem teve o desplante de tentar se superar, criando um máquina que em tese seria melhor que ele próprio. Ledo engano!
Os traços podem ser similares, mas nunca estarão ungidos pelo suor da emoção do criador. E, sendo assim, é muito fácil separar uma coisa da outra.
Livros, meu queridos! Os resilientes sobreviventes! Desde que o mundo é mundo e até quando mundo não mais será!
São simplesmente indispensáveis. Livros, esses danadinhos imprescindíveis!
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Peter, lindo texto. Também sou uma apaixonada pelos livros, e sim, os de papel. Nada consegue tirar essa magia!
Juliana P. Borges.
Peter, compartilho esse encanto pelos livros que, muitas vezes nos salvam de um mundo carente de magia.
Patrícia Macieira
Adorei
Peter,
Meu indicador ficou aflito aqui enquanto as linhas eram passadas e eu não via a Carla Madeira na sua lista afetiva. Somos bairrista, né? Acrescento Conceição Evaristo com sua escrita densa e amorosa.
Você arrasou. Como sempre!
Bjs