Já era esperado. A chuvarada que cai foi prevista pelo serviço de meteorologia que, a cada dia, tem mais acertos que erros. São os avanços da tecnologia. O trânsito está lento. Alguns relâmpagos nos lembram flashes de quem pretendesse registrar a tarde escura sob o barulho dos trovões.
O semáforo fechado nos permite ver alguns retardatários tentando fugir das lágrimas do céu que lavam o asfalto e molham os transeuntes. Entre eles um homem magro, envelhecido, em cujo rosto vincado pelo tempo parece escorrer também suor como numa ravina sulcada por memórias, chuvas e lágrimas. Seu esforço para alcançar a frágil segurança da calçada é guiado pelo olhar cansado enquanto com braços fortes impulsiona as rodas de sua cadeira já bem surrada.
Essa imagem me transporta para a BH dos meus tempos de estudante secundarista. O único par de botas ortopédicas enxarcadas; o receio de cair pela força da enxurrada que desce a São Paulo e a insegurança de tentar andar mais rápido para não me molhar tanto.
Ainda assim, é uma lembrança feliz. Saindo da Galeria Ouvidor, tínhamos do outro lado da rua uma passagem entre os prédios para alcançar a Avenida Amazonas. À direita ficava a Perfumaria Lourdes. Loja famosa, grande, bonita. Naqueles idos de 1978, comprar nessa loja ou, mesmo, na Galeria Ouvidor, um presente para a namorada era um galanteio. Já não é mais assim. A região se degradou. Há muitos mendigos, moradores de rua, assaltantes, portas e paredes pixadas, sujeira, excrementos a céu aberto. O “glamour” se foi com o tempo, pelo descaso com os bens públicos.
Enquanto espero o sinal se abrir, relembro outro cadeirante que encontrava frequentemente por ali, vendendo balas nos pontos de ônibus da Amazonas entre a Afonso Pena e a Tamoios:
– Compra. Depois você me paga. Tem de menta, amendoim, Soft, Chicletes…
Era uma oferta a qualquer que ali estivesse. Não a um velho conhecido. Era como gritar mais alto que os trovões que todos mereciam confiança. Que aqueles pobres passageiros que se espremiam sob a pequena cobertura do ponto do ônibus, tinham crédito. E alguns deles, assustados, temendo as duchas expelidas pelos pneus dos carros nas poças em frente ao ponto, não entendiam tanta fé. Não estavam a costumados a ser vistos, respeitados ou reconhecidos como sujeitos de direito àquela confiança. Afinal, somos um país com apenas 3% da população mundial; e, no entanto, amargamos 10% de todos os homicídios do planeta. Como então confiar no desconhecido que se posta ao seu lado? Como aquele pobre homem que busca seu sustento vendendo balas pelas ruas ofertasse, sem qualquer garantia, o seu produto a alguém que poderia nunca mais aparecer por ali? E se o encontrasse novamente, quem se lembraria da compra e honraria o compromisso de pagar?
Minha história, reconheço, mudou. Depois de muitas batalhas, muitos tropeços, muitas adversidades, hoje estou confortavelmente sentado e seguro ao volante, vendo todas as cenas na tempestade, enquanto divago em memórias ouvindo, um maravilhoso violino, “Csárdás” de Vittorio Monti.
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Na positividade e delicadeza das narrativas de suas memórias, Mario Sérgio Rodrigues Ananias, o Serginho, encanta transformando em poesia, fatos e momentos marcantes de sua vida.