O besouro entrou no quarto pela greta da janela. Era noite. Após hesitar por alguns segundos preso à cortina, alçou um voo desgovernado através do cômodo emitindo ruídos estranhos. Ora ouvia-se o zunido de suas asas batendo, ora o som de sua dura carapaça se chocando contra as paredes. Observá-lo era ao mesmo tempo assustador e fascinante.

Seu desespero parecia atraí-lo em direção à lâmpada do abajur ao lado da cama. Aquela era a única fonte de luz acesa no ambiente.

Após um ruído seco, ele desapareceu. Pensei com certo otimismo que tivesse se exaurido de voar em vão e caído morto após o último baque, visto que o espetáculo infrutífero durara vários minutos. Prossegui com meu livro, ignorando as forças da natureza que insistem em reivindicar seu lugar invadido por esta casa localizada no mato.

Fiquei com sono. Apaguei a luz. Deitei no meu travesseiro como de costume, dobrando o cotovelo sob a cabeça para formar um coxim. Fechei os olhos. E aí senti algo arranhar meu braço.

Levantei rapidamente, acendi a luminária e não vi nada sobre a fronha branca.

Por um segundo, pensei que poderia ter sido a haste de uma pluma que preenchia o travesseiro – embora este tivesse recheio sintético –  ou uma florzinha seca que voara do arranjo na mesa ao lado. Sabia que não.

Olhei novamente com atenção e vislumbrei um pequeno volume movimentar-se sob o tecido da fronha, elevando-a em torno de si conforme o trajeto. Ali estava ele. Aquele inseto graúdo e grotesco, invasor da minha paz vespertina, dentre todos os lugares possíveis daquele quarto havia se alojado justamente no interior do meu travesseiro.

Atirei tudo no chão e comprimi o volume sobressalente com toda a força que tinha usando a ponta de um chinelo. Crec. Formou-se uma mancha líquida na fronha. Estava feito. Deixei tudo ali como estava, cadáver, besouro, arma branca solada e sucumbi ao sono, tentando considerar o evento como algo rotineiro e normal e permanecer impassível.

Embora Gregor Samsa tenha seus argumentos, há dias em que não sobram forças para elucubrações filosóficas ou ocultistas sobre insetos pavorosos em camas. Fica tudo por um somatório de descuido, janela aberta em hora errada, preguiça, cansaço e mero instinto de sobreviver.

Tais Civitarese

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