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Num canto de bar

Mário Sérgio

Depois da forte chuva caída à tarde que aplacou o escaldante dia, uma brisa, ainda úmida, dançava fagueira entre as paredes velhas dos prédios que resistiam na parte mais antiga do centro. O burburinho das ruas retomava seu espaço nas calçadas que em alguns pontos refletia as almas apressadas com compromissos ainda a cumprir dentro do expediente comercial. Gente que se esbarra, gente que não se vê. Pressa demais para fazer hoje o que foi feito ontem, o que será feito novamente amanhã. Enquanto a vida escorre como enxurrada aos bueiros gradeados. Sem volta. Procuro entre tantos rostos, expressões ausentes, um conhecido que possa dispor de um pouco de si. E me vem à lembrança a deliciosa voz de Dóris Monteiro cantando Hei! Você (1971), de Elizabeth, lançada dez anos antes. Por mais que me atente, não encontro resposta à minha busca. Os afazeres diários, avalio, se apropriaram do tempo daquelas pessoas.

Ao nível da calçada, já não se tem na pele o calor do sol que, por trás dos edifícios, dispõe alguns esparsos fachos de seus raios se esgueirando pelo concreto, árvores e postes; se despedindo do dia. 

Ainda tenho o hábito do relógio de pulso, mas não de ver nele as horas. Aprendi a me livrar de, pelo menos, essas amarras que como um cabresto invisível, nos direcionam às soluções dos anseios de terceiros, enquanto nossas vontades aguardam numa fila interminável, movediça a cada momento. 

Preciso chegar em casa, porém me lembro que, por esses dias, ninguém  espera por mim. Vejo um anúncio escrito a giz num banner pendurado à porta de um corredor que culmina, poucos metros adentro, numa escadaria. É quase uma convocação: “Hoje: Vaca atolada e Filé ao molho gorgonzola”. Por que resistir e depois me arrepender? Não há vejo motivo. 

O corredor está molhado, pelos sapatos vindos da rua onde acabara de chover. As escadas, também, porém como um “degradée”, em que a umidade diminui à medida que se sobe. O aparelho ortopédico começa a ranger um pouco porque, com a chuva, a articulação próxima do tornozelo perde a lubrificação e o esforço de subir as escadas íngremes pioram o atrito entre as peças móveis. Meu esforço torto não desiste.

Alcanço o pequeno salão, com umas vinte e cinco mesas. Olho em volta as quatro ou cinco ocupadas e me dirijo ao lado oposto do que seria um pequeno palco improvisado. Caso encontre alguém com que possa conversar, o habitual som alto atrapalharia um pouco menos. Chegamos quase juntos, eu e o músico. Ele me ultrapassara nas escadas, mas não o identifiquei como o artista que tocaria ali.

A moça loura, de cabelos longos e ondulados, num vestido vermelho, que emoldura perfeitamente seu belo corpo, olhava de soslaio o instrumentista que apanhou o saxofone, ajustou o banquinho e a altura do microfone enquanto dirigia a ela um sorriso cúmplice. Do meu canto eu apreciava a cena magistral que me parecia uma pintura de Toulouse-Lautrec…

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