Entre as inúmeras sugestões de emprego que tantas pessoas propuseram para o meu futuro, engraxate foi das mais comuns. E não me furtei à indicação. Entre meus oito e dez anos ganhei algum dinheiro com essa atividade, incluindo mais de um formato: presencial, com minha caixa estacionada em frente ao bar e lanchonete Arco-íris, na esquina da rua em que morávamos; e “delivery”, pois eu buscava os diversos pares de calçados em casas próximas e os entregava brilhando.
Indicações também constantes, mas em que nunca me inspirei, eram sapateiro, por pressupor que esse profissional atua sempre sentado; e esmoler, pelo mesmo motivo e, ainda, poderia me valer da minha condição de PcD, para amolecer o coração dos cristãos que frequentavam a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição e dos boêmios do bar do Bill, ali bem próximo. Avaliei, no entanto, que meu futuro não deveria se restringir aos limites que a poliomielite me impusera.
A parca renda conseguida com a graxa servia para comprar, às vezes, um delicioso pedaço de frango, daqueles de vitrine; e para pagar o ingresso nas matinês de domingo no Cine São Geraldo. O primeiro filme que vi, bancado por meus proventos, foi “Satã, o Urso Cinzento” que, na verdade, parecia preto azulado e bastante assustador.
Curiosamente, não havia quem sugerisse cátedra, medicina, engenharia, arquitetura. Hoje, mais de meio século depois, consigo avaliar que a extensão do olhar das pessoas naquele bolsão humilde em que me inseria, tinha um limitador natural.
Atualmente, as novas tecnologias, especialmente na comunicação, destruíram paradigmas, forjaram uma nova cultura e permitiram enorme ampliação das perspectivas pessoais a quem se dispuser a compreendê-las, domá-las e torna-las suas amigas. Entendo que ninguém pensaria, naquele tempo, que alguém nas minhas condições pudesse se tornar um artista, um músico, um ator. Não havia espaço nesse cenário porque, para aquelas pessoas, tal mundo era intangível a qualquer de nós.
As oportunidades hoje são melhor dispostas a todos. São muito mais ecléticas e democráticas. Não estamos no melhor dos mundos em termos de acessibilidade, inclusão, nem mesmo no respeito às diferenças. Falta ainda longo percurso até que a dignidade humana assuma o protagonismo nas relações, até que se possa entender, sem qualquer esforço, que todos e cada um atende a um propósito no seu curto espaço de existência.
Há ainda, e experiencias recentes reverberam o fato, momentos de preconceitos irracionais; de prevalência do capacitismo; de segregação e de posturas indecentes que não se coadunam com o desenvolvimento holístico da humanidade. A parte hipossuficiente, acuada nessas situações, se se retrai e sofre. Quase numa súplica, como no paralelo da bela canção “A flor e o espinho” (1973) de Nelson Cavaquinho, Alcides Caminha e Guilherme de Brito, se busca espaço de respeito e valor: “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”.
Alguns, aguerridos, resilientes e corajosos, venceram adversidades.
Quanto a mim, meu coração se plena de garra e força na esperança de levar meus sonhos onde minhas frágeis pernas jamais conseguiriam.
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