Lembrei, aqui nesses dias de intensas queimadas, em que fuligens encobrem os céus, um momento de vazio em que o coração pareceu também queimar.
O bar que já foi mais conceituado, hoje chamado de “copo sujo”, não como referência à sua higiene, mas como reminiscência daqueles que se perdem nas muitas paisagens de seu efêmero espaço. Ali estava eu, muito jovem ainda, com o coração já em frangalhos pelo abandono. Aquele ambiente de iluminação parca, a cantora cansada, com a voz amargurada, interpreta outro bolero sofrido, mas dolente e aconchegante. Tudo contribui para afogar mágoas. Seria bom estar ali? O álcool não me interessava.
Sombras vagavam entre as mesas com passos arrastados suportando o peso de suas dores, seus ressentimentos e sua solidão que insistia em não deixar ver além dos próprios copos. Casais se formavam por interesses inconfessáveis, com a certeza de um grande amor que se desfaria na manhã seguinte, aos primeiros raios de sol. E cada um voltaria à própria rotina sem perspectivas de futuro, só com o receio de ter ido além da esperança de uma única noite. Quais as belezas suportariam mais uma investida do dia? Ou a mais um vazio deixado pela noite? E porque eu deveria me importar com qualquer coisa além de minha própria desilusão amorosa? Talvez até encontrasse alguém com quem unir meu gosto pelos ritmos latinos, por “Mar y Cielo”, minha aversão à cerveja e minha paixão despedaçada.
Busco em redor tateando com o olhar entre a fumaça dos cigarros, que ainda eram permitidos e os corpos indefinidos dos que se encaminham à pequena pista de dança em frente ao palco. Cinco pessoas conversam a poucos metros, a duas mesas de onde estou. Falam em tom confidencial, diferente dos bares abertos, de fim de tarde, onde a conversa ganha contornos de gritos à medida que as garrafas esvaziam. Minha insegura juventude ainda não consegue ser vencida por alguma bebida e me sinto diferente, fora de meu ambiente, revestido de uma pintura incompatível, que não cabe ali. Sou estrangeiro naquele burburinho e, avalio, não serei acolhido; somos estrutura química conflitante.
Se ao menos minhas instáveis e raquíticas pernas sob a mesa me permitissem levantar lépido, fagueiro e dançar; me apresentar e convidar alguma daquelas maquiadas donzelas para alguns momentos de proximidade, para falar de mim, ouvir-lhe as estórias. E, quem sabe (?), conquistar sua atenção, estimular seu interesse para o tórrido amor de uma única noite; entender, de uma vez por todas, o que elas esperam de um bom par.
Dois casais se dirigem à pista, a bela ruiva fica solitária, delicadamente sorvendo bebida avermelhada do copo longo com limão na borda. Seria minha oportunidade? E se não for? Como iniciar a abordagem se não com convite para… Não. Eu não sei, eu nunca nem tentei dançar de pé. Sinto-me tão vulnerável. Ela me olha, eu desvio o olhar sem sequer arriscar um riso. O que ela vai pensar quando eu me levantar?
Sinceramente, eu nunca saberei.
Peter Rossi Sigo contando minhas peripécias, espero que não os enfade, mas, ao contrário, desperte…
Wander Aguiar Buenos Aires é uma das minhas cidades favoritas no mundo, e jamais vou…
Aproveitando o ensejo das eleições municipais (e inspirada pelo ritmo musical ouvido por meus filhos),…
Sandra Belchiolina Gosto das meias palavras ou de poucas palavras, Das reticências que dão margem…
Daniela Piroli Cabral danielapirolicabral@gmail.com O suicídio é tema complexo e sensível, ainda revestido de estigma,…
Eduardo de Ávila Não bastassem tantos dissabores a que a vida moderna tem nos condenado,…