Mário Sérgio

“Se fosse permitido, eu revertia o tempo…” 

Esta frase da música “Uma Canção Desnaturada” (Ópera do Malandro/1979), do genial Chico Buarque, dá uma ideia do mal que se causa a alguém quando o bem-querer se transforma em obsessão. 

Milton de Oliveira e Mirabeau também no ano de 1979, se valiam da maravilhosa voz da mineira guerreira, Clara Nunes, para lançar o belo samba Obsessão, que mostra esse afã pelo ser amado.  “… O que eu sinto por você é obsessão…”.

É comum que pais se preocupem com a segurança dos filhos, em proteger e tentar encaminhá-los ao futuro que entendem ser o da felicidade. O problema é querer que se mantenham sob sua dependência, abrigados em suas asas para sempre, dificultando ou impedindo, em nome da segurança ou do amor, que eles se desenvolvam e trilhem seus próprios caminhos.  

Os riscos que muitas cidades passaram a representar para as pessoas, fizeram com que o temor dos adultos instituísse um “toque de recolher” cada vez mais restritivo às crianças. E essa neurose, chega ao ponto de cunhar personagens caricatos, os “criados em apartamento”, como a indicar que estas células residenciais moldam pessoas inseguras, atormentadas, incapazes de um convívio saudável pelo volume de incertezas em relação aos outros. Quaisquer outros. Houve a cessão quase formal dos espaços públicos ao marginal, ao bandido, de maneira gradual e constante, como bem observado na poesia de Eduardo Alves da Costa, carioca de nascimento e paulista por adesão. O seu texto “No Caminho com Maiakovski”, em que uma parte bastante conhecida é frequente e equivocadamente atribuída ao poeta russo Vladimir Maiakovski, ou ao alemão Bertold Brecht, traz um anticlímax denotando a derrota do bem: “Na primeira noite eles se aproximam/ e roubam uma flor/ do nosso jardim. / E não dizemos nada. […] rouba-nos a luz e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. …”

Na poesia, fica muito claro que a cessão da liberdade é paulatina. Que a perda não é traumática, mas aceita gradativamente como na conhecida referência ao “sapo cozido”.

Essa abordagem também se aplica, com especial ênfase, às Pessoas com Deficiência que, muitas vezes, são mantidas afastadas do convívio social, distantes das oportunidades de relacionamentos, “protegidas” da vida plena.

A última paraolimpíada, Paris/2024, (como também as anteriores, com a diferença da exposição massiva na mídia), mostrou que o excesso de proteção pode ser extremamente encarcerador, cerceador das chances de uma PcD conquistar seu espaço vital com alegria, independência e autonomia.

Como bem questionado pelo ótimo comediante de Stand up, Vini Santos, como se inicia uma vida de glórias esportivas para uma PcD? Um atleta sem braços nem pernas que participa de uma prova de natação, em seu início de carreira, foi arremessado à água? E quando ocorreu, quantos acorreram para resgatá-lo? Quanto do nosso medo é transferido aos nossos filhos, muitas vezes sem qualquer respaldo racional?

Resta-nos, então aderir à suplica de desapego do Zeca Pagodinho: “Deixe-me ir, preciso andar…”, no samba Preciso me Encontrar (1976-Candeia e Cartola).

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