As lágrimas secaram. A pele está ressecada. Os olhos ardem. O fogo consome as florestas e o vento arrasta a fuligem por centenas de quilômetros. A gente está secando por fora. E por dentro. O ministro dos Direitos Humanos é acusado de assédio. As mulheres que o acusam são acusadas de não terem formalizado suas acusações antes. As pessoas que as defendem são acusadas de racismo. O sol derrete os miolos. A aridez consome toda a minha flexibilidade.
Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, uma professora conta que o ministro meteu a mão entre as suas pernas durante um jantar. Os comentaristas das redes sociais esbravejam: “Por que não denunciou antes?”. O ministro dos Direitos Humanos. Um homem negro. De esquerda. A gente tem vontade de chorar, mas as lágrimas secaram com esse ar desértico que parece dominar o país.
“Ninguém tem estrela na testa.” Era assim que minha mãe dizia. E eu aprendia que as pessoas não são somente boas, nem somente más. Todos e cada um de nós transitamos entre esses dois mundos. E fazemos coisas das quais poderemos nos envergonhar. Ou não. Somos camadas e mais camadas, como cebolas.
Quando alguém diz que sofreu um abuso ou uma violência, paro o que estiver fazendo para ouví-lo. Negros sofrem abusos e violências todos os dias. Eu sou branca. Se um negro me diz que sofreu racismo, eu o escuto. E acredito nele. Não há motivos para não acreditar numa vítima. Em princípio, nenhuma vítima mente.
Eu também nunca denunciei. Tinha 13 anos quando um homem acima de qualquer suspeita percorreu o meu corpo com as mãos contra a minha vontade. Durante décadas, creditei o incômodo e a vontade de chorar à minha própria incapacidade de dizer não. E talvez também à minha ignorância ou tolice. Respeitado e querido por todos, ele certamente não estava fazendo nada demais. Aquilo nunca foi nada demais.
Curioso é o fato de eu já ter 50 anos e aquilo nunca ter me saído da cabeça. Talvez se alguém denunciasse antes, ou se alguma outra mulher dissesse que ele também fez algo assim a ela, eu tivesse coragem de contar aquilo que jamais sequer nomeei como violência. Talvez se finalmente tivesse minha história acreditada pela voz de alguém menos covarde do que eu – sim, eu me sinto covarde –, tivesse coragem de contar dos incômodos que aquilo me causou. Não o faria para me libertar dos monstros – que, graças a Deus, não me perseguem mais –, mas apenas para evitar que outras meninas vivam o mesmo.
Não é fácil reconhecer-se como vítima. Não é fácil confessar um abuso sofrido. E é ainda mais difícil nomear o abusador. Sobretudo porque, a qualquer momento em que se faça, haverá vírgulas, parênteses e apostos explicativos a dizer que as intenções da acusação são ruins, que seus efeitos poderão ser cruéis e que, ao fim e ao cabo, talvez não se tenha assim tanta certeza do que fizeram ao seu corpo. O que é o corpo de uma mulher frente à reputação de homem?
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