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Desenho

Peter Rossi

O risco do lápis no papel é um gesto dos mais fortes, se não o maior deles. As curvas, os deslizes, os caminhos percorridos. O desenho é a alma rabiscada sobre um fundo branco.

Confesso que já tentei, por diversas vezes, me entregar a essa paixão, mas os beijos que dei no papel não mereceriam qualquer menção. Foram beijos bobos, insossos. Desenhar não é pra qualquer um mesmo!

Acho que quando o cérebro molda a mão o faz em absoluta integridade. É a permissão completa, plena, irrazoável. Encontram-se as curvas, como se versos fossem e dali emerge o sol em pura poesia, na sua mais brilhante essência. Volteiam os traços e o mar ressalta do papel, molhando nossos olhos de tanto prazer.

Admiro, e como admiro, em especial, aqueles que com absoluta destreza transferem para o papel imagens puras que dispensam qualquer interpretação. A palavra, o verso, a frase, exigem uma tentativa de desvendar a mensagem escondida. Atrás da letra se podem ver sombras diversas. São muitos os sóis a brilhar no papel escrito e, em decorrência disso, as paisagens são múltiplas e, corre-se o sério risco de que a imaginação guie o leitor a um pensar completamente diverso do externado por quem escreveu.

Com o desenho é diferente. Nele a ideia aparece completa. Simples assim: o que se vê é exatamente o que o desenhista fez. Não há mensagem subliminar, o traço é direto, a letra é dúbia. O rabisco tem início e fim, a frase muitas vezes termina antes do final, perdida no fundo da garganta do papel. Diria, então, que a o desenho é mais franco que a frase. Não é por outro motivo que a gente usa tantas figuras de linguagem como: preciso desenhar? Desenhei você na minha mente … Enfim, o desenho não permite dissensões, é escancarado.

O desenho não faz jogo algum, enquanto as palavras, via de regra, bailam em frente aos olhos tentando ser o que não são.

Meu caro professor de história da arte faz do desenho arte pura, como menino, fogueteiro e risonho. Corre a mão dali, escorre os dedos dali e de repente conseguimos entender o que é o estilo gótico.

Renascimento, só entendi plenamente, depois que ele desenhou. Estilos, línguas, jeitos, maneirismos, critérios, tudo perfeitamente desenhado. São rascunhos de ideias profundas passados a limpo. E nesse livro, meu ilustre professor, surgem imagens indeléveis, inesquecíveis.

Protagonista de todo esse sonho surge o lápis, aquele que alcança a mão e, enlaçado, transforma em traço todo o esboço. De todo laço um caminho, de todo carinho um abraço.

O lápis passeia nervosamente sobre o papel. Sobe morros, desce ladeiras. Constrói trilhos e em cima deles faz deslizar o trem.

Cria a borda do lago tranquilo e dentro dele faz surgir pedras e seixos … e peixes.

Escorrega e, sinuosamente, borda o rio.

O lápis multiplica os traços e correndo de um lado para o outro faz surgir a janela. Do lado de fora pendura o sol como se fosse cortina do dia.

Sem calma o lápis faz brotar a chaminé e dela a fumaça branca querendo dizer que há um calorzinho bom de lareira, de tremelique de madeira.

A fumaça sobe e vira nuvem, grudada no azul do céu. Volteia prá cada lado e surge uma gota. O lápis chora em forma de chuva.

Fica meio zonzo, gira em si mesmo e formata a bola. Rabisca perninhas e de repente são os meninos correndo atrás dela.

O lápis é trôpego. Insiste em flores, com dois cabinhos e pétalas em arco. Surgem corações.

E o mar, com suas ondas sempre terminando em caracol! Triângulos fazem as velas dos barcos.

Navegam em círculos nossos sonhos. Até estrelas aparecem. A lua sempre minguante. Anoitece no papel.

O lápis desenha até o cansaço. Foge de minha mão e pousa, não sem antes, como por mágica, se fazer borboleta. Dou uma última olhada para o papel e durmo. Dorme o lápis também, afinal.

Cara maravilhoso esse … Acabou por desenhar a minha infância!

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  • O lápis, quando assume a sua autonomia criativa, pode ser traiçoeiro... transferindo para o papel em branco, significantes de profundo significado.

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