Taís Civitarese

Nunca mais consegui enfiar uma linha no buraco da agulha. Tudo se mostra uma névoa. Se tento, é frustrante. O buraco parece estreito demais, são vários segundos tentando. Acerto raras vezes, puramente na sorte. Por fim, pego outra agulha bem grande, inadequada, que marcará todo o tecido durante a costura.

Minha visão era excelente. Estava entre as melhores da minha turma na Medicina – segundo o exame que fizemos no curso de Oftalmologia. Não sei se o que a estragou foi o celular. Ou o tempo. Ou ambos. Ou o tanto de açúcar que como. Imagino que enrijeceram-se os músculos que movem meu cristalino e este parou de se contrair para aproximar a visão das coisas. Atualmente, ele é uma lente estreita e preguiçosa que somente permite enxergar de longe. Cansou de se esforçar.

De todas as alterações que a passagem do tempo trouxe, esta foi a que mais senti. Mais do que a perda do viço da pele e dos músculos, mais do que o “metabolismo lento”. O embaçamento do mundo que está próximo se assemelha a uma sutil despedida das coisas. É como se os sentidos, insidiosamente, começassem a se aposentar. Ainda tenho tanto o que enxergar e não consigo. Esta frase faz eco também em meu inconsciente. O corpo é basicamente constituído por metáforas. Um produtor de auto-ironias. Um veículo de viagem com prazo de validade certo.

Vamos aos óculos. Visto-os com muita resistência. São estranhos, sujam o tempo todo, estou certa de que em breve os esquecerei em algum lugar. Preciso me acostumar às novas configurações da idade. Meias compressivas, exercícios compulsórios, palmilhas anti-impacto e agora, óculos.

Não havia me dado conta de todas as mudanças que requerem soluções por apetrechos. Foi apenas quando as instruções do xampu tornaram-se impossíveis. Esta sim uma mudança consistente: letras que me escapam.

Restou sucumbir às lentes adicionais como mais um dispositivo de ajuda. O tempo está passando. Para não me esquecer, meus olhos avisam diariamente.

Tais Civitarese

View Comments

Share
Published by
Tais Civitarese

Recent Posts

Explicação pra tudo

Silvia Ribeiro Eu nunca vou assimilar porque precisamos tanto de explicações pra todos os momentos…

19 horas ago

Apego

Mário Sérgio “Se fosse permitido, eu revertia o tempo...”  Esta frase da música “Uma Canção…

2 dias ago

Jogo do Galo

Rosangela Maluf Quando se conheceram, ambos já sabiam das limitações e dificuldades que aquele início…

2 dias ago

O projeto

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com A magnitude do projeto: Turbinar o colapso climático Multiplicar o fogo e…

3 dias ago

Mendoza

Peter Rossi Depois de conhecer meio mundo, calhou de vir até Mendoza, pela primeira vez.…

3 dias ago

Inversão de papéis

Wander Aguiar Meu gosto por viagens certamente vem da influência dos meus pais. Desde sempre,…

4 dias ago