Os caminhos de ser-tão - Fonte: A autora, Caliandra solitária do sertão, 12/07/2023, Chapada Gaúcha - MG
Há um ano eu fazia a travessia do caminho do sertão a pé (192km, de sagara a Chapada Gaúcha-MG) e escrevi este texto quando voltei da caminhada:
Escrever com as mãos e caminhar com os pés. Encontramos a ontologia do essencial.
Caminhei, no último mês, 190 quilômetros do sertão de Minas, entre Sagarana e Chapada Gaúcha, caminhos estes, alinhavados pelas histórias de João Guimarães Rosa, no romance Grande Sertão: Veredas.
E sertão é esse ser-tão que entranha na gente. Depois que a gente atravessa ele (ou será que é ele que nos atravessa?) não tem jeito de ser mais a mesma. Já não sou a mesma. Sou eu mesclada com Diadorim, sou eu marcada pelas pegadas de Riobaldo.
Continuo impregnada com a beleza árida e a delicadeza hostil do sertão. Aparente oposição complementar, assim como a vida. Assim como o amor e a morte. Permaneço decantando experiências do vivido: cenário, sotaques, sabores, areias, mistérios, territórios, encontros, rituais.
Fui batizada nas águas do Rio Urucuia, me aliancei às causas socioambientais, materializada pelo anel de tucum. Banhei-me nas suas veredas. Tropecei nos seus palíndromos. Fiz detox de internet, conexões só as verdadeiras: comigo mesma, com a natureza e com o momento presente.
Fui abençoada pelo pajé, experimentei, em ritual, a limpeza e o aterramento do rapé. Dancei com os acordes das sanfonas e das flautas. Cochilei à sombra da Mangueira ouvindo “fé e paixão”, de Milton Nascimento. Fotografei caliandras e bordados regionais. Comi tapioca, feijão e farofa.
Rezei e me aqueci à beira do fogo das fogueiras. Atravessei portais. Fui portal na roda das mulheres. Provei castanha de baru, rapadura, suco de tamarindo, de mangaba e de maracujá de mato. Caminhei protegida pelo cajado-cavalo-carranca batizado Ulisses. Enchi os pés de bolhas.
Foram vários incomodos, vários chamados, várias provocações. Metáforas incólumes da travessia.
Experimentei espaços vazios, ouvi silêncios, ecos cheios de possibilidades. Partilhei medos e vulnerabilidades na incerta beleza do caminho. Vislumbrei os marcantes contrastes do agronegócio e dos assentamentos da reforma agrária. Tensões internas e externas.
Hospedei-me nas casas dos nativos: dona Zélia em Sagarana, dona Mana em Morrinhos e dona Nainha em Serra das Araras. Trocas íntimas e genuínas com existências forjadas pelo sertão. Uma delas me revela: “Só saio daqui para o cemitério”.
Fui recebida por Ana Paula e seu farto café da manhã preparado sobre as lágrimas da perda de sua mãe: “Passei a semana inteira rastelando esse terreno para esperar vocês”.
Fui liderada pelo guia Agemiro, um sábio senhor de 70 anos, de disposição invejável que tudo sabe. E o que ele não sabe, ele inventa, vira estória. Conheci Jorge, seu olhar, seus livros e suas palavras.
Derramei derradeiras lágrimas em construções geodésicas. Desafiei os perigos do viver. O que me resta sou eu mesma e as minhas memórias, que escrevo com as minhas mãos agora.
E todo caminho é caminho de volta.
Mário Sérgio Quando ainda criança, na minha montanhosa cidade, ouvimos uma estória curiosa sobre um…
Parte I Rosangela Maluf Nem sei mesmo porque me lembrei do João! Não falei nele,…
Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Finalmente transformado em réu pelo STF, a questão que se coloca é:…
Peter Rossi A vida nos propõe revanches, que costumamos chamar de resgates. São derrotas anteriores…
Taís Civitarese Agora, aos noventa anos, devo confessar um crime que cometi ao longo de…
Sandra Belchiolina “Existe um momento na vida de cada pessoa em que é possível sonhar…