Há um ano eu fazia a travessia do caminho do sertão a pé (192km, de sagara a Chapada Gaúcha-MG) e escrevi este texto quando voltei da caminhada:
Escrever com as mãos e caminhar com os pés. Encontramos a ontologia do essencial.
Caminhei, no último mês, 190 quilômetros do sertão de Minas, entre Sagarana e Chapada Gaúcha, caminhos estes, alinhavados pelas histórias de João Guimarães Rosa, no romance Grande Sertão: Veredas.
E sertão é esse ser-tão que entranha na gente. Depois que a gente atravessa ele (ou será que é ele que nos atravessa?) não tem jeito de ser mais a mesma. Já não sou a mesma. Sou eu mesclada com Diadorim, sou eu marcada pelas pegadas de Riobaldo.
Continuo impregnada com a beleza árida e a delicadeza hostil do sertão. Aparente oposição complementar, assim como a vida. Assim como o amor e a morte. Permaneço decantando experiências do vivido: cenário, sotaques, sabores, areias, mistérios, territórios, encontros, rituais.
Fui batizada nas águas do Rio Urucuia, me aliancei às causas socioambientais, materializada pelo anel de tucum. Banhei-me nas suas veredas. Tropecei nos seus palíndromos. Fiz detox de internet, conexões só as verdadeiras: comigo mesma, com a natureza e com o momento presente.
Fui abençoada pelo pajé, experimentei, em ritual, a limpeza e o aterramento do rapé. Dancei com os acordes das sanfonas e das flautas. Cochilei à sombra da Mangueira ouvindo “fé e paixão”, de Milton Nascimento. Fotografei caliandras e bordados regionais. Comi tapioca, feijão e farofa.
Rezei e me aqueci à beira do fogo das fogueiras. Atravessei portais. Fui portal na roda das mulheres. Provei castanha de baru, rapadura, suco de tamarindo, de mangaba e de maracujá de mato. Caminhei protegida pelo cajado-cavalo-carranca batizado Ulisses. Enchi os pés de bolhas.
Foram vários incomodos, vários chamados, várias provocações. Metáforas incólumes da travessia.
Experimentei espaços vazios, ouvi silêncios, ecos cheios de possibilidades. Partilhei medos e vulnerabilidades na incerta beleza do caminho. Vislumbrei os marcantes contrastes do agronegócio e dos assentamentos da reforma agrária. Tensões internas e externas.
Hospedei-me nas casas dos nativos: dona Zélia em Sagarana, dona Mana em Morrinhos e dona Nainha em Serra das Araras. Trocas íntimas e genuínas com existências forjadas pelo sertão. Uma delas me revela: “Só saio daqui para o cemitério”.
Fui recebida por Ana Paula e seu farto café da manhã preparado sobre as lágrimas da perda de sua mãe: “Passei a semana inteira rastelando esse terreno para esperar vocês”.
Fui liderada pelo guia Agemiro, um sábio senhor de 70 anos, de disposição invejável que tudo sabe. E o que ele não sabe, ele inventa, vira estória. Conheci Jorge, seu olhar, seus livros e suas palavras.
Derramei derradeiras lágrimas em construções geodésicas. Desafiei os perigos do viver. O que me resta sou eu mesma e as minhas memórias, que escrevo com as minhas mãos agora.
E todo caminho é caminho de volta.
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