Em 1986 se mudou uma nova vizinha em frente à minha casa. Loira, carioca, sensual e linda. Boato corrente de que ela havia posado nua para a revista Playboy. Anos depois soube que a fofoca era verdadeira; ela saíra peladona na revista, não na capa mas no recheio.
Eu ficava o dia todo jogando bola na rua, admirava aquela deusa quando a via passar. Ela tinha uma tatuagem com a estética bem anos 80 na panturrilha: um beija flor bicando a seiva de uma rosa.
Os anos se passaram, ela se casou e teve duas filhas. Depois se separou, virou dona de casa e engordou bastante. Seus cabelos loiros outrora volumosos e cacheados ficaram brancos e mal pintados, se parecendo mais com o meia colombiano Valderrama do que com a minha musa de antigamente.
Certa vez eu saí de casa pela manhã e a vi na rua varrendo o passeio. Olhei de relance sua panturrilha gorda e vi que o beija flor virou um pombo.
Tomei trauma de tatuagem.
Penso que por mais belo que seja o corpo e mais moderna a tatuagem, inexoravelmente o tempo passa e as coisas mudam. Muda a cabeça, o físico e a moda das tatoos, que, por sua vez, também se modificam, ficando esverdeadas, esticadas e opacas.
Sai a juventude, os músculos, o colágeno e a tinta, fica a pele do ser humano com a aparência de grafite de viaduto sujo do centro da cidade.
Passado o impulso narcisista, o arrependimento vem.
Ainda que inconfesso, ele vem.
Bate a bad no menino do Rio que foi juvenil com seu dragão tatuado no braço. Naquela época seu shape lhe permitia andar com o calção corpo aberto no espaço.
Lembro que no início dos anos 90 ter uma tatuagem era sinônimo de autenticidade e transgressão. Sobre elas, meu amigo Cláudio Augusto tinha uma teoria inusitada: segundo ele, as mulheres fumantes e tatuadas davam mais fácil.
Isso numa longínqua época em que transar era difícil e demorado, só rolava em namoro sério e após longas prestações. O normal era voltar pra casa cheirando os dedos.
Também lembro que, em épocas passadas, já foi o máximo ter um ideograma japonês tatuado, uma tribal ou alguma frase good vibes escrita em letras pequenas.
Sei que tem muita gente que se sente único e original por fazer o corpo de gibi, mas, desculpa falar: tatuagem é modinha.
Tão modinha que pra se diferenciar atualmente não basta apenas ter tatuagens, pois isso quase todo mundo tem ao menos uma. É preciso tatuar em lugares ainda mais ousados. Daí, o diferentão tatua o pescoço e até a cara, e instala a skin de vendedor da Chilli Beans.
Pra ser diferentaço mesmo, só mesmo fazendo a Anitta e tatuar a tampa do jiló.
As histórias de tatuagens que vi ao longo da vida são desastrosas e surreais…
Meu amigo Tôfofo lançou um Che Guevara grandão nas costas. O tatuador recomendou que ele não pegasse sol e usasse uma pomada cicatrizadora.
Mas Tôfofo era intransigente e ousado. Com seu Che Guevara nas costas se sentiu o verdadeiro revolucionário de nenhuma causa e resolveu jogar futebol no mesmo dia. Correu, suou, tomou sol e deitou-e-rolou na grama sintética.
Resultou que seu Che Guevara virou um queloide em alto relevo. De bônus, suas costas peludas deram ao camarada Che uma aparência de Chewbacca de Star Wars.
Pra piorar, Tôfofo foi seduzido pelo lado negro da força e virou Bolsonarento radical. Quando esteve debaixo de sol pedindo golpe na porta do quartel não pôde sequer tirar a camisa da CBF pra não ser confundido e apanhar feito um comunista infiltrado.
Lembro de um heterotop de classe média que, há trinta anos, tatuou de fora a fora nas costas a logomarca da Bad Boy. Egóico, fortinho e malhado, se via como o verdadeiro menino mau. Com seu carro rebaixado e som no talo, pagava de gatão descamisado domingo à noite no Druida do bairro Cidade Nova.
Tive notícias de que o antigo Bad Boy é hoje um 50tão barrigudo, patriotário, tri-separado, pagador de pensão atrasado, ativo no Jusbrasil e travequeiro master passivo não assumido.
Invariavelmente, quem não tem senso estético e político, também não tem senso do ridículo.
Uma amiga na pandemia teve um surto emocional que a fez apagar a laser algumas tatuagens antigas ao mesmo tempo que fazia novas. Em seu delirante autoengano dizia que, dessa vez, estava fazendo escolhas melhores e conscientes. Pelo que pude observar nas redes sociais, ela trocou seis por meia dúzia.
Tenho outra amiga que, recém desempregada na pandemia, pagava novas tatuagens fazendo dívidas no cartão de crédito pra quitar com as parcelas do seguro desemprego. Nesse malabarismo financeiro foi uma pena não ter conseguido receber também o auxílio emergencial, tenho certeza de que teria feito em suas costas uma obra de arte maior que de Michelangelo na Capela Sistina.
Ela que só tatua rosas, está hoje mais florida que vestido da Farm.
Já outra moça resolveu homenagear o falecido pai tatuando seu rosto nas costas. E criou um problema para seu namorado, que, na hora H se constrangia em transar com ela de 4 sendo observado pelo o sério semblante do falecido sogro.
Num infeliz coito interrompido, o genro acabou acertando a cara do homenageado, que, por sua vez, se manteve circunspecto e nada disse pois morto estava.
No início dos anos 2000 eu quase tatuei três estrelinhas na nuca. Começou uma moda de tatuagens pequenas e eu achei bacana a ideia de estrelas minimalistas na parte de trás do pescoço. Depois que a Luana Piovani e uma repórter do TV Fama fizeram, eu percebi que essa moda feminina não era pra mim.
O Tadeu do presente carrega inúmeros arrependimentos do Tadeu do passado, mas, felizmente, nunca votei na direita nem tenho estrelinhas no pescoço.
Pode me chamar de chato, sistemático e conservador, mas a minha pele segue sendo uma tela em branco com histórias tatuadas na alma.
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