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Andanças com Quixote

Peter Rossi

Convidei Quixote pra umas andanças, fomos até Ouro Preto. Sancho estava com diarreia e excesso de flatulência, não nos acompanhou. Quis dar a Quixote a segurança de um cavaleiro andante com altivez. Previ os obstáculos que deveríamos derrubar. Algumas aves de rapina que nos queriam roubar as armaduras de algodão e feltro.

Para Quixote elas pesavam como sempre, não conseguiu desimaginar que delas estava nu, embrulhado numa calça de moletom e uma camiseta de malha. Ainda assim, seu empertigar tracionava os músculos a sustentar muitos quilos de metal.

Espada fora da bainha, Quixote vitrificava as construções da antiga Vila Rica. Lembrou de embates que ali enfrentara em priscas eras. A cada curva do caminho, apontando a espada que mal conseguia erguer, embora espada alguma existisse, demonstrava um inimigo vencido. E assim fomos nós a cavalgar num jipe sobre as pedras do calçamento ouro-pretano.

Em pé, mãos apoiadas no vidro, emulsificava aquelas imagens e delas extraía o sumo da saudade. Quantas vezes ali venceu. A cada muro se lembrava de inimigos estatelados, alguns trespassados, outros empalados até. Vinha a sua memória episódios específicos em que se dignificava a anotar a última vontade de seus inimigos.

Ao lado, não conseguia perceber tamanha percepção. Mãos no volante, não me fazia de Sancho, nem poderia, Quixote sabia quem eu era. Jamais teria a sabedoria de desvendar tantos mistérios e desnudar tantos moinhos de vento. Não! Eu apenas estava ali, e que me considerasse satisfeito em desfrutar de momentos tão magnânimos.

Mas Quixote ainda tinha algo em mente. Ouvira falar que sua amada Dulcinéia vivia naquelas paragens. Numa curva, teve a certeza de vê-la dependurada na janela de um sobrado, olhar perdido no reflexo da luz da lua. Com destreza secular e inimaginável, num impulso que só os cavaleiros sabem ter, abraçou a amurada, para desespero dos transeuntes. As pernas finas a balançar a quatro metros do chão. A luva atrapalhava o contato com a grade escorregadia, lubrificada pelo sereno.

Estacionei e busquei ficar de sobreaviso para a queda que não aconteceu. Quixote era hábil. Num impulso jogou o corpo varanda adentro. Desespero dos jovens que viviam naquela república. Mas, envoltos em ondas etílicas, convidaram o intruso a desfrutar da bebida. Quixote não se fez de rogado, experimentando uma nova dose. Pelo semblante, imaginei que se deliciava. Debaixo da marquise assoviava, chamando-o a cavalgar o jipe, afinal tínhamos o caminho de volta. Queria lhe dizer que aquela mulher não era Dulcinéia, mas sim Marília, não consegui, entretanto.

Quatro copos depois e lá estava o cavaleiro com olhos estatelados me pedindo pra voltar. – Ela não está aqui, assim que subi ao seu encontro, simplesmente se esvaiu. Dulcinéia some como uma bruma, invariavelmente. Aquiesci. As musas, as mulheres se esvaem quando menos os cavaleiros se dão conta. Paramos, no retorno, na sorveteria. Sorvete paquistanês. Quixote ouvira falar naqueles árabes malditos, os mouros marrons que tantas vezes enfrentara, do lado direito do mundo. Levando à boca um boa dose de sorvete de hibisco se rendeu. Seus olhos denunciaram o prazer que sentia. Aquela comida gelada era uma novidade suprema. Queria mais. Avisei que as tripas poderiam estranhar. Ele concordou. Tirar a armadura num acesso intestinal era um dissabor que enfrentara. Se lembrou de um excesso de vinho e sardinhas, deitadas sobre pão de milho com tomates que lhe deixaram imóvel por alguns dias.

Esse país lembrava a Galícia, as pradarias. Não prestava atenção ao tapete de asfalto à sua frente. Via apenas os campos que sempre vencera. Amada ibérica com tantos inimigos a vencer. Após longo silêncio me perguntou sobre Pancho. Disse-lhe que logo estaríamos juntos. A aventura, perto de acabar, me roubava minutos precioso de prazer ao lado do herói! Mas me rendi, afinal súdito que é súdito rende sempre homenagens ao seu ídolo.

A estrada nos conduzia a Belo Horizonte, chegaríamos em breve. Perguntei a Quixote se estava feliz. Me respondeu que salvara Dulcinéia mais uma vez, naquelas paragens que mouriscas não eram. Não sabia bem a origem do campo de batalha, mas tinha cumprido sua missão. As luzes me mostravam que os prédios se avizinhavam. Quixote não se dava conta do que estava em frente aos seus olhos. Dormia o sonho dos justos, embalado pelo álcool. Ao seu lado, me regozijava da oportunidade que a vida me concedeu. A viagem acabou. Também estava cansado. Queria também fechar os olhos. Deixaria Quixote junto do Sancho. Foi o que fiz.

Li a última página e com lágrimas em olhos que teimavam em se fechar, dormi. Dormi em paz!

Vale!

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