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O velho relógio

Daniela Mata Machado

Tempo, tempo, mano velho
Falta um tanto ainda, eu sei
Pra você correr macio

Fernanda Takai canta no Spotify, enquanto observo, na parede da sala de estar, entre a janela e uma estante vermelha, o relógio de badalo que herdei de minha mãe, cujos ponteiros frequentemente se adiantam. Agora mesmo, o celular me informa que são 8h56, mas o velho relógio – cujo pêndulo faz um tique-taque incessante, ainda mais perceptível quando todos dormem – me diz que já são 9h30. Todos os dias, abro a portinha de vidro e acerto seus ponteiros. Às vezes chego a fazer isso duas, três vezes ao dia. Tenho uma vaga memória – mas talvez ela me traia – de que minha mãe também fazia o mesmo. O velho relógio me lembra, várias vezes ao dia, que o tempo pode ser um trem desgovernado e que nem sempre teremos a chance de retardar a marcha dos seus ponteiros.

Não consegui encontrar nenhuma fonte confiável que me informasse, com precisão, quem foi o primeiro ser a proferir a frase “tempo é dinheiro”. Há umas referências de ela que teria sido dita pela primeira vez – na sua versão em inglês, “time is money” – por Benjamin Franklin, em texto para jovens empreendedores norte-americanos. A ver. Tornou-se uma frase tão gasta pelo uso, que a tomamos por verdade. No entanto, tempo não é dinheiro. Ou, ainda que seja, não deveria ser.

Tempo são os ponteiros do relógio que todos os dias adiantam e todos os dias eu torno a atrasar. Tempo é a memória daquela goiabeira que talvez tenha sido cortada por alguém que decidiu cimentar o terreiro para facilitar a limpeza. Tempo é o momento em que se decidiu acreditar no ousado projeto de permanecer na praia, vendendo colar de miçanga e aplaudindo o pôr-do-sol, e nunca mais voltar para o escritório onde as horas pareciam tão opressivas. Tempo é a preguiça na rede, ouvindo Jacques Brel e recitando Boris Vian no calor escaldante do litoral baiano.

Tempo é a barriga crescendo e abrigando outra vida. Outro tempo. Tempo é o breve instante em que o relógio apressado parece aquietar o pêndulo, suspendendo o tique-taque, para que a gente possa ver um alvorecer no mais absoluto silêncio. Tempo é a festa de aniversário de 9 anos, com todas as crianças da rua cantando parabéns e se empanturrando de brigadeiro e guaraná. É a risaiada dos primos, contando piadas e histórias de terror. E descobrindo o amor.

Tempo é o encontro fortuito, às duas da tarde de uma quarta-feira, atravessando uma avenida movimentada no Centro da cidade e transformando um dia comum na memória mais especial que se terá na vida. Tempo é o choro escondido. São os beijos roubados. As fugas com o circo. Os arroubos de amor ou de ira. Tempo são as conversas sobre o tempo. É a prosa política que vara a noite, com pausas para recitais de poesia e canções entoadas sob o efeito encorajador do vinho, enquanto alguém dedilha o violão. Tempo é o porvir, que será sempre tão bonito e alentador. Tempo é o alvorecer que a gente espera.

Tempo é aquele hiato aberto na vida quando a gente se apaixona e jura por tudo o que é mais sagrado que poderá, para sempre, viver só de amor. E o tempo se abriga no quarto, onde a simples presença do outro preenche tudo. Tempo são as juras de amor eterno. É a eternidade de um instante.

Tempo é o abraço coletivo dos amigos que prometem caminhar juntos para sempre. São as histórias que eles vivem e que povoarão as memórias de uma vida inteira. O tempo é a vida inteira. Pode ser que haja outras. Espero que sim. Mas, nesta aqui, o tempo está correndo. E talvez não haja uma porta de vidro no relógio da vida para que possamos meter os dedos e retardar os ponteiros.

Tempo também pode ser dinheiro. Mas tenho cá pra mim que é melhor que não seja.

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