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Esfrega

Peter Rossi

Logo que Jonas se casou, foi morar num bairro muito simples, onde vivem pessoas muito simples e, por isso mesmo, muito francas, verdadeiras.

Era um prédio de quinze andares, com três apartamentos por andar. Cada apartamento talvez fosse pouco maior que o vão do elevador.

A garagem não era coberta, alguns afortunados colocavam os carros sob os pilotis. A grande maioria, paralelamente aos muros do imóvel.

Fiz uma amizade muito grande com o vizinho de porta, ou melhor, um deles, afinal eram três os apartamentos abrigados sob o mesmo piso.

Tomavam cerveja quase que diariamente, para desespero da sua jovem companheira a ter que dividir o marido fresquinho com o vizinho. Resignada, acabou fazendo parte da turma, e as rodadas de buraco eram infindáveis. A vida seguia assim.

Quarenta e cinco famílias a dividir a mesma área de lazer, que nada mais era que o pátio do prédio. Tiravam os carros, que não eram muitos. Ficavam estacionados na rua, e com toda a área livre, um trazia algumas mesas de plástico, outro o aparelho “três em um”, o som mais moderno da época. A churrasqueira, feita com a metade de um barril de metal já estava por ali. Desciam linguiças, asinhas de frango, um pedaço de fraldinha e a festa começava. Ao lado da churrasqueira, uma caixa de isopor repleta de gelo e cerveja. Seu Onofre, que morava na cobertura, nunca esquecia a sua cachacinha e algumas cabacinhas para degustar.

Valdir, o dileto amigo de andar, irmão camarada, trazia pescoço de peru ensopado. Jonas confessou que demorou a criar coragem para experimentar, mas a iguaria tem um sabor muito especial. Foi quando passou a gostar de pescoço de peru.

Nessa época não fazia ainda incursões culinárias, o que significa dizer que qualquer paixão o divertia. Não tinha filhos, aliás, no prédio, eram poucas as crianças. Valdir tenha já filhos adultos, era bem mais velho. Ainda hoje Jonas se pergunta se está vivo, perdeu todo o contato por questões menores, que aqui não merecem ser citadas. Na época, não tinha ainda maturidade para resolver questões advindas das opiniões alheias. Num momento de necessidade, emprestou ao amigo algum dinheiro e, à custa do que não lhe era absolutamente essencial, se rendeu aos reclames, e acabou perdendo o que era mais valioso. Juventude perversa, imediatista e tola.

Mas aqui estava a falar dos encontros aos sábados à tarde.

Era uma geleia real, como dizia Gilberto Gil, mudando o R pelo G – Geleia Geral! Pessoas as mais diversas, todas felizes a experimentar o início da vida a dois. Alguns, mais velhos, a demonstrar que valia a pena. Eram tão diferentes, mas iguais. Queriam desfrutar do bom da vida e dormir o sono dos justos.

Ali viviam também Geraldo e Sônia, um casal mais ou menos da geração de Jonas e a esposa. Ele com alguns problemas físicos, mas muito bem resolvido. O sonho de Geraldo era tocar violão, mas tinha os movimentos prejudicados em razão de um acidente de moto, suas articulações não se estendiam, de maneira que os braços insistiam em ficar presos ao tórax. Mas, ainda assim, tentou e tentou. Louvável! Os pequenos acordes eram uma sinfonia em sua vida.

Dentre outros vizinhos, Adilson e Irene. Ele, um rapaz moreno e franzino, representante comercial de uma pequena fábrica de roupas para jovens. Ela fazia o gênero da mulher “gostosa”, longos cabelos pretos a cair sobre seios fartos e rijos. Pareciam se dar muito bem. Tímidos, não eram de se enturmar.

Adilson tinha um carro popular de uma marca cuja fábrica está instalada em nosso estado e cuidava dele com todo cuidado. De fato, todos nós observávamos que dia sim, dia não, lá estava ele a passar pano no seu Fiat. Como o carro ficava ao relento, Adilson não poupava esforços em deixá-lo sempre vestido à rigor.

Pois bem, num desses encontros o desencontro imperou. Irene desceu com uma calça colada ao corpo e atraiu muitos olhares, sobretudo dos filhos adolescentes, que pouco se preocupam com regras de etiqueta. A cada vai e vem, os rapazes suspiravam.

Tudo isso não passou despercebido a Adilson. Mas Irene sempre agia assim. Não havia nada de diferente.

Adilson, por sua vez, não pensava dessa forma. Ele tinha descido antes e, certamente, estava algumas cervejas adiante da esposa. Ela dirigia a 60 quilômetros por hora, ela não diminuía dos 100.

Enfim, o previsto imprevisível acabou acontecendo. O marido, se sentido ofendido pelos lânguidos olhares dos demais, despejou sua fúria na mulher amada.

– Você não se respeita, tampouco a mim! Desce com essas roupas coladas, com um decote quase no umbigo. Eu estou aqui fazendo papel de idiota!

A menina desatou a chorar e as demais esposas, num esforço coletivo do time feminino, logo foram consolá-la. Disseram para que se acalmasse, que o marido tinha bebido umas a mais. Que ninguém reparara no ocorrido – quanta desfaçatez!

E foi quando Irene emergiu com todas as suas forças e usando os braços para se desvencilhar das mulheres à sua volta, disse em alto em bom tom:

– Adilson, você fica aqui dando uma de macho, mas vou te dizer uma coisa, uma coisa que nunca te disse antes. Se você me alisasse o tanto que alisa o seu carro eu seria muito mais feliz!

Verdadeiro “espalha bolinho”, cada um para uma direção diferente, um na churrasqueira oferecendo nacos aos demais, outro buscando cerveja. Seu Onofre, encheu a cabacinha por duas vezes.

A solidariedade feminina implodiu. Irene se viu sozinha. Enxugou as lágrimas com as costas da mão direita e foi encher o copo de cerveja. Olhando de um lado ao outro, percebeu que o marido não estava mais ali.

– Uai, será que o Adilson subiu? Ah, já sei, foi buscar o material para lavar o carro. O Fiat na rua deve ter ficado imundo. Ele é muito caprichoso, sabiam? E sorveu toda a cerveja do copo que ainda estava em suas mãos.

 

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