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A dica do Bernardino

Tadeu Duarte
tadeu.ufmg@gmail.com

Bernardino certamente é sobrenome. Independentemente de qual seja seu nome de batismo, o fato é que aqui no bairro Cachoeirinha ele passou sua vida sendo simplesmente Bernardino. Protético, casado e pai de três filhos, dentre eles Dudu Bolinha, meu amigo de infância.

Bernardino era uma figura que sempre me despertou grande curiosidade. Meus pais se separaram quando eu tinha dois anos de idade e, talvez por isso, sua figura paterna me trazia tamanho interesse. Como não sabia como era ter um pai presente dentro de casa, eu tentava desvendar esse mistério avaliando os pais dos meus amigos. E Bernardino era diferente dos outros pais, não era um pai óbvio, chato e careta como todos os outros. Em seus olhos havia faísca de loucura, um semblante de emputecido e uma lucidez única e inteligente. A um só tempo era simples, elegante e ignorante.

Cultivava uma fama de explosivo juntamente com um relativo bom gosto, que iam da música à gastronomia. Tinha uma vitrola de vinil com clássicos dos anos 60, 70 e 80 e uma pequena adega de vinhos, um pequeno luxo para os padrões da vizinhança no fim dos anos noventa. Toda semana o caminhão da distribuidora bebidas deixava um engradado de Mate Couro na sua casa, seu refrigerante preferido.

Estava quase sempre de camisa branca, bota cowboy sem meias, barbeado e com os cabelos volumosos. Seu barbeiro é quem vinha a sua casa, de jaleco e trazendo consigo uma elegante maleta de couro. Curioso é que enquanto Dudu Bolinha já era um pino de boliche, gordinho e careca, Bernardino ostentava sua cintura de toureiro e seu corte de cabelo Charles Bronson. Estava longe de ser um homem de posses, morava de aluguel e, a contragosto, andava de ônibus.

Quando fez 65 anos não quis usar o passe livre do coletivo, preferindo pagar a passagem para não ficar “ali na frente com os dinossauros”, como dizia. De toda forma, Bernardino era tão classudo que se dissesse desembargador, juiz federal, neurocirurgião ou empresário da construção civil não haveria quem duvidasse.

Inexplicavelmente o homem tinha fogo nas ventas, uma raiva embutida parecia deixá-lo puto com algum problema insolúvel. Sofria de hemorróidas, o que por si só não explica tamanho descontentamento. Quem o visse conversando com alguém na rua sabia que era impossível discordar dele. Sua fala era lenta, contundente e assertiva. Suas sobrancelhas se arqueavam juntamente com seus grandes olhos, seus cabelos brancos grisalhos transmitiam a sabedoria de tempos longínquos. Em qualquer diálogo, desimportante que fosse, ele fixava seus olhos do seu interlocutor e seu gestual assertórico transmitia a segurança inabalável que falta às palavras.

Bernardino era dono mais absoluta convicção sobre qualquer assunto. E se ainda assim, depois de tanta contundência o agora já adversário, constrangido e encabulado, ensaiava a mínima dúvida ou discordância, ele finalizava com sua sentença e bordão: “Essa é a minha dica pra você, rapaz… Pega pra sua vida a dica que estou te dando!”

Dentro de casa Bernardino era poucas ideias. Ainda mais seco, grosso e direto. Dudu Bolinha que o diga… Por ser o seu próprio patrão em sua clínica protética, jamais praticou a política da comunicação não violenta. Em rompantes de sincericídio distribuía esculachos gratuitos, fosse em quem fosse, ao ponto de eu ter medo de tocar sua campainha para chamar o meu amigo.

Bernardino nunca conversou nem meia palavra comigo, zero. Só me cumprimentava e ponto final. Soube que certa vez ele disse para o Dudu Bolinha “esse rapaz aí é seu amigo mesmo”. Fiz questão de constar esse comentário como meu atestado de bons antecedentes, aos olhos do Bernardino eu parecia um cara legal.

Ocorre que em um determinado momento impreciso de sua vida, ele fez o que qualquer pai de família faz ou sonha em fazer: Bernardino andou cinquenta metros, atravessou a rua e entrou no bar.

Naquela altura da vida ele já tinha mais de três décadas de casado, estava com os filhos criados e aposentado, embora seguisse com seu consultório agora nos fundos de casa. Em suma, livre das obrigações do dia a dia, só restava a Bernardino viver.

Certamente os Dráuzios Varellas de plantão discordarão do que vou dizer, mas acredito que a bebida alcoólica e a liberdade que só um bar fudido oferece deram a Bernardino um enorme sopro de vida. Ali, no refúgio do lar, ele reinou. Se sóbrio já era imbatível nas discussões, imaginem um Bernardino bêbado? Seu tique nervoso o fazia morder a língua antes de deitar falação. E olha que no duelo da ignorância dos temas aleatórios Bernardino enfrentava verdadeiros titãs: Milton Curinga, Tony Gaiola, Otavinho das Cadernetas, Bareba, Dandão e Montanha, além é claro dos pesos pesados da obtusidade, Toninho Zavéssas e Beto Belas Coxas.

Bernardino era de fato o dono do cinturão no ringue filosófico do Bar UFC. Aquelas bocas ordinárias com dentaduras e dentes postiços por ele colocados, contornadas por bigodes amarelados num blend de espuma de Kaiser & molho de dobradinha eram sempre nocauteadas pelos jab’s estilo Mike Tyson das suas dicas.

Filósofos e acadêmicos teorizam sobre os limites da inteligência, afinal, por muito que se saiba, o conhecimento é sempre limitado. Enquanto a formação de um intelectual demanda décadas, por sua vez a ignorância é rápida. Com boas doses de autoconfiança, eloquência e um tiquinho de falta de vergonha na cara é possível, em poucos meses, formar um ignorante de quatro costados, alheio aos fatos e inquebrantável em sua razão.

O canal Brasil Paralelo do YouTube garante a diplomação. O marqueteiro que criou em caixa alta o genial slogan fascista “BRASIL ACIMA DE TUDO, DEUS ACIMA DE TODOS” soube conquistar perfeitamente esse tipo de eleitor: o brasileiro burro, tiozão de buteco, é onipresente. Não tem cor, idade ou classe social.

Só quem viu Bernardino se transformar no showman do entretenimento sabe do que estou falando. Enciclopédico, dava aulas de sinuca, sociologia & política, carteado e caça-níquel. Embriagado de vida, transcendia em generosidade. Comprava os pastéis da estufa pra alimentar os cachorros de rua, enquanto os abraçava, eles lhe lambiam o rosto e boca em gratidão.

Socorria os endividados que vendiam produtos diversos no topa-tudo dos encalacrados. E Bernardino adquiriu de um tudo: violão, máquina de fazer algodão doce, gaiola de passarinho e até um Ômega CD, carro de luxo da época. Esse último acabou revendendo uma semana depois ao perceber que não tinha garagem em casa nem carteira de motorista. Dudu Bolinha que passou a semana como seu motorista particular ficou inconsolável por voltar a andar a pé.

Hoje creio que Bernardino foi o primeiro coach brasileiro. Tinha dicas perfeitas para tudo. O segredo do sucesso estava ao alcance de quem estivesse disposto a ouvir e crer. Diferentemente de Pablo Marçal, Bernardino não era mentiroso nem cobrava fortunas por suas dicas. Gratuitos, seus cursos e palestras não deixavam os pobres ainda mais miseráveis.

A viuvez foi um duro golpe em Bernardino, sua esposa era um anjo na terra. Sozinho, se mudou de casa dele pouco se ouviu falar. A última vez que o vi ele estava jogando sinuca às 11 da manhã em um bar inimigo da vigilância sanitária. Um mal súbito e a sua teimosa recusa em procurar um hospital acabou por levá-lo.

Ainda hoje penso na dica infalível que Bernardino não me deu, é angustiante imaginar o quão me seria útil.

 

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