Se o barulho que se fez na última semana tiver dado bom resultado, é possível que, enquanto você está lendo esta crônica, o PL 1904/2024 já tenha saído da pauta da Câmara dos Deputados. Ainda assim, eu gostaria de trazer o tema de volta à baila para que a gente não esmoreça nem esvazie o debate. Afinal, aquela citação de Simone de Beauvoir já deveria estar esgarçada pelo uso excessivo até nos posts do Instagram, mas torno a mencioná-la porque continua assombrosamente atual: “Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.
De todas notícias que vi na última semana sobre esse projeto de lei, apelidado de PL dos Estupradores, as que mais me chamaram a atenção traziam imagens de aias em túnicas vermelhas, numa referência à minissérie The handmaid’s tale, livremente inspirada no livro de Margareth Atwood, uma obra extraordinária que me tirou o fôlego quando a li, pela primeira vez, há quase 25 anos. Após o sucesso da série produzida pela HBO, quase todo mundo já sabe que a trama se refere a uma sociedade cujo totalitarismo é baseado em religião e cujas vítimas são, inevitavelmente, as mulheres. Umas mais, outras aparentemente menos. Mas todas as mulheres, em algum momento, tornam-se vítimas. Mesmo quando algozes.
Para quem acabou de chegar da Sibéria ou para os que leem esta crônica de algum lugar no futuro, talvez caiba explicar que o projeto de lei, do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), cuja tramitação havia sido aprovada em regime de urgência na Câmara dos Deputados, estabelece que a mulher que se submete ao procedimento de aborto após a 22ª semana de gestação poderá cumprir pena de até 20 anos de prisão. Atualmente, caso uma mulher seja estuprada e essa violência resulte em gravidez, ela pode realizar o aborto legal no Brasil a qualquer momento da gestação. A pena para o homem que estupra é de 12 anos de reclusão.
No livro de Atwood, a função da protagonista, e de toda uma casta de mulheres férteis como ela, é ser estuprada a cada período fértil para oferecer filhos aos homens cujas esposas não conseguem engravidar. São chamadas de aias e existem para isso. Habitam o mundo para serem estupradas e gerar filhos de seus estupradores: os homens mais bem posicionados da sociedade religiosa que estabeleceu um regime totalitário na distópica República de Gilead.
O que esse projeto de lei colocou em jogo, no parlamento brasileiro, não foram as suas convicções religiosas. Nem as minhas. Sim, eu também as tenho. E já tive outras. O que se colocou em tramitação foi o quanto as convicções religiosas de um grupo restrito, que ora detém o poder nas mãos, pode definir o destino das mulheres. De todas as mulheres. E você pode estar pensando agora que isso sempre foi assim. E eu talvez seja obrigada a concordar com você. É verdade. Eles sempre decidiram o destino dos nossos corpos, das nossas mentes, das nossas vidas. Mas, em algum momento, conseguimos ocupar algumas pequenas brechas que eles deixaram passar, naqueles momentos em que se sentiam tão seguros de si, que piscaram os olhos e deixaram de nos vigiar, certos de que, adestradas, acabaríamos vigiando a nós mesmas… e umas às outras. Sim, as aias somos nós.
Se você é uma mulher que tem a firme convicção de que levaria adiante a gestação de um estuprador, você talvez aceitasse, sem grandes questionamentos, o papel de aia. E está tudo bem, embora não esteja. Porque isso não é sobre você. Nem sobre as suas convicções religiosas. Mas se você chegou a endossar a ideia de que uma mulher que se submete ao aborto deve ficar presa por oito anos a mais do que o homem que estuprou, você não é uma aia. Você é uma das tias que torturam as aias. E eu tenho uma notícia pouco alentadora pra te dar: as mulheres jamais vão ocupar o um lugar semelhante ao dos homens nessa sociedade misógina que o totalitarismo religioso promove. Porque isso não é sobre a sua fé ou os seus princípios. Nem sobre os meus. É sobre homens decidindo o que cabe e o que não cabe às mulheres. Todas as mulheres. Não importa o quanto você acredite que está fazendo tudo certo. Não importa o quanto você reze na cartilha deles. Se um dia você decidir não se submeter ao estupro, você será punida. Porque essa é a função das aias nessa sociedade que você agora endossa.
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Perfeita reflexão Dani!