De todas as dores sentidas no coração, há sempre um resto que fica. A dor do coração sempre deixa uma sobra, um vestígio de que por ali esteve. É aquele fiozinho de sofrimento que resiste a passar, fica condensado, cristalizado, pulsando, ora no estômago, ora na fantasia, e que nos exige dignidade e inteireza.
O resto da dor custa a se esvair, é marca forte do que foi vivido e insiste na lembrança. Reforça que a história não pode ser apagada. O resto da dor é o saber da emoção e da memória que precisa ser incorporado na mente e ressignificado na corporeidade.
O resto da dor às vezes protesta porque se fixou na ilusão falaciosa de que se tinha tudo. O resto da dor se faz porosa, estranha, está aprendendo a administrar a falta. O resto da dor procura o estupendo, mas se encontra com o possível.
O resto da dor se depara com seus cacos. Dá de cara com eles, na tela branca do computador e nos caminhos tortuosos da cidade. O resto da dor os recolhe afetivamente na tentativa vã de restaurar o que foi perdido.
O resto da dor chora e encontra o silêncio. Na pausa, revela que há muito mais a ser dito. O resto da dor desistiu de procurar a felicidade na vida e foi procurar no Google. O resto da dor é escravo, carrega o gesto definido da mão negra, mas ainda quer ser forasteiro e fazer viagens transatlânticas. O resto da dor clama por liberdade, mas não desaprendeu a ser servil.
O resto da dor exige ressarcimento do afeto, ele faz você chamar de exagero o que, na verdade, é a própria vida. O resto da dor se engana, fica confuso quando as coisas não saem como planejado.
O resto da dor está em decadência, descobriu que não houve sequer um instante de verdade. Desmorona aos poucos, dia após dia, na sucessão de momentos cinzentos, mas continua a pulsar lentamente, como um núcleo sólido e sensível impregnado em mim e que me machuca quando eu me viro para olhar para trás.
O resto da dor se fez humano, e percebeu o quanto perdeu da vida. É preciso encerrar a travessia se não quiser continuar a perder mais.
Ontem à noite choveu e eu não tinha companhia. Não fui caminhar. O resto da dor me fitou os olhos e me questionou: vai se levantar ou permanecer caída?
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