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Amarrando o cadarço

Peter Rossi

(Pai sentado, lendo o jornal. Penumbra. Vento ao longe.

Um copo de conhaque, o brilho azul da fumaça de um charuto)

(Há o barulho do vai e vem da cadeira de balanço, cor cinza, sem o brilho de antes, porém com o aconchego de sempre.)

(Interrompe na sala o filho, de seis anos, louro como nunca se viu, bonito como nunca se imaginou)

Filho: Pai, hoje eu aprendi uma coisa muito legal na escola. Aprendi que as pessoas colhem aquilo que plantam! Isso é verdade?

Pai: Olhando assim, meu filho, podemos dizer que a vida é uma grande horta. São sorrisos sabor de alface, afagos com cor de cenoura, e abraços com laços de beterraba.

Filho: Sem brincadeira! Alface, beterraba e cenoura são muito ruins!

Pai: É… mas sorrisos, afagos e abraços são indispensáveis.

Filho: Meu pai, me conta o que existe de tão importante no que estamos dizendo. Você fala de verduras e legumes como se sentimentos fossem. Sei que não são. Fico confuso. Ou são?

Pai: Filho, a vida é mesmo uma horta. Mas assim falei, aproveitando o gancho de nossa conversa. Melhor seria que a vida fosse uma praia, com areia, cerveja, sombras de corpos de mulheres únicas desafiando o brilho do sol!

Filho: Não estou entendendo…

(O Pai levanta-se da cadeira. Fecha o livro que está lendo. A luz é mais intensa.)

Pai: Mudando de assunto, como foram suas notas na escola? Ontem você me pediu uma mochila nova. Eu disse que não tinha dinheiro, era muita cara, era verdade!

Filho: Minhas notas não foram as melhores, mas passei de ano. Fiz como queria!

Pai: Nada mais do que eu queria. Espero de você, meu filho, o que sei que pode dar. Se suas notas as melhores não foram, decerto não por descuido ou desinteresse …

Filho: Deu prá passar e pronto ….!

Pai: É isso aí! Imaginei mesmo que você só queria passar de ano, como se fosse a verdade absoluta. Te confesso que sempre pensei assim. Estudar sempre nos ultrapassa as expectativas, porém se nos mantermos motivados, alcançaremos o objetivo sem maior desprazer.

Filho: Sabe Pai, penso que queria ser como você. É lógico que não quero ter sua barriga e nem ser careca, mas, afora isso, sabe que não tinha a menor dúvida em ser você?

Pai: Meu amor, isso é muito bom de ouvir. Te confesso que quando você nasceu procurei um curso de super-herói. Queria ser o melhor pai, o primeiro amigo, uma mistura de Homem Aranha com Tom Mix. Mas deste último você jamais ouviu falar. Posso te dizer: foi meu melhor amigo até você aparecer.

Filho: Perdi o bonde, como dizia vovó. Enquanto você falava eu não pensava em nada e, com isso, eu esqueci …

Pai: Tudo bem filho, deixa prá lá. Eu estava aqui, lendo o meu livro, e você entrou. Contou uma prosa e a nenhuma conclusão chegou. E aí?

Filho: Sabe o que é, eu só queria interromper.

Pai: Como assim?

Filho: Olha, eu gostaria de estar com você o dia inteiro. Gostaria que você me dissesse qual a melhor roupa, o melhor sapato. Sei que você nem sempre está do meu lado, mas eu gostaria que estivesse.

Pai: E eu, rapaz? Acredita que penso diferente? Lógico que não. Penso em você todo o tempo. Gosto de sentir sua saudade.

Filho: Eu também, mas eu não consigo parar de pensar em você, papai!

Pai: E nem quero que pare. Aliás, filho, vou te confessar uma coisa, sem você, estar vivo seria mera burocracia. Como um corpo a espera do apodrecer. Vários são aqueles que apodrecem pelo caminho…

Filho: Nem vem com essa conversa. Você é o melhor “consertador” do mundo. Não é rico como o Bill Gates, mas conseguiu comprar um carro novo.

Pai: Amigo, cada etapa é como o degrau de uma escada. Vence-se e apoia-se para o subir seguinte. Mas, tenho mesmo orgulho de sua admiração. Sou o imperfeito perfeito. Sei do que não sou capaz, mas da conseqüência que é cumprir todos os compromissos assumidos com você.

Filho: Como assim?

Pai: Sabe o que é? Eu sempre tenho motivos para estar feliz com você. Andamos de bicicleta, nadamos, vamos ao teatro, colamos figurinhas ….

Filho: Mas isso é bom prá mim, não prá você!

Pai: Como você está enganado. Colar figurinhas é como voltar ao passado. Você não pode esquecer que eu também já fui menino um dia! E não tinha nada melhor! Nós brincávamos, corríamos, parávamos, sorríamos, sofríamos …

Filho: E por que parou?

Pai: A vida me propôs que fosse assim, eu não tinha como mudar, deveria seguir em frente, foi o que fiz. Mas o importante, filho, foi aquilo que consegui com meu próprio esforço. Meu pai, seu avô, infelizmente, não tinha muito como me ajudar. Ele tinha medo da vida.

(O filho se levanta num rompante. Dirige-se para a porta. Arrepende. De cabeça baixa volta, e olha os olhos de seu pai …)

Filho: Pai, vou embora. Qual o melhor caminho a seguir? Para onde devo ir?

Pai: Meu amor, essas são perguntas difíceis de responder. Posso até te querer longe, mas sempre perto de mim, num gesto mágico em que o meu amor, embalado no sonho, cumpra a feliz tarefa de lhe dar um beijo.

Filho: Mas Pai, você ainda não me respondeu. Qual caminho eu sigo? Estou em dúvida, preciso de você.

(Silêncio absoluto. O Pai olha atento ao movimento das árvores ao balé do vento. Sente o cheiro das ruas afrente.)

Pai: (Vira-se.) Filho, o caminho a seguir eu não sei, já te disse. E não sei mesmo. Toda experiência é pouca, e única. O que eu senti não quer dizer, necessariamente, o que você sentirá. Te digo, vá em frente. Mergulhe profundamente no que acredita. Siga, sempre, siga. É importante que sozinho tente alcançar seus objetivos. Minha tarefa terminou, agora é com você, simplesmente você e a vida, sem ajuda alguma. A propósito, posso amarrar seu cadarço?

(O filho olha os próprios pés. A luz diminui. Penumbra. O pai amarra os cadarços do filho e sai de cena. O menino novamente olha os pés. Escuridão.) (E cai o pano.)

 

 

 

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