Me lembro bem que foi dentro de uma cabana construída com duas cadeiras da sala, cada uma virada para um lado e coberta por um lençol azul que fiz a promessa mais solene da minha vida. Estava sentado no chão, com uma lanterna cor de laranja na mão, a luz bem fraca, as pilhas estavam acabando. Naquela época, aliás, pilhas acabar era uma expressão corriqueira. Recorríamos a algumas artimanhas, como coloca-las dentro do congelador, como se com isso pudessem recuperar a carga. Nunca entendi direito a lógica desse proceder mas o seguia finalmente e tenho que concordar, por escassos dois ou três minutos, as pilhas ganhavam mesmo vida nova.
Enfim, fato é que estava dentro da minha cabana. Ao meu lado alguns índios com os torsos nus e calças de couro marrom, tentando fugir de outros bonecos, esses últimos de camisa e calças azuis e bonés na cor cinza. Os homens de azul sempre em cavalos brancos. Eram parte do meu Forte Apache e sempre acampavam comigo.
Trazia, ainda, uma toalha surrada, branca quando foi fabricada, bege na minha mão, com barrados também azuis, como as camisas dos meus soldados.
Dentro daquela cabana e sob a tênue luz da lanterna com a pilha fraca, me lembro bem, fiz minha promessa: jurei, de maneira solene, com a mão esquerda em meu peito, pois a direita equilibrava a lanterna, e em voz alta que nunca deixaria de ser criança, ainda que o tempo conspirasse em contrário.
E o tempo passou, e de maneira inexorável, me convidou, me seduziu, me obrigou até a esquecer que criança fui. Mais que isso, o tempo, como herói maldito, pretendeu não deixar espaço algum para que me mantivesse incólume na promessa de anos atrás.
Foram várias as situações em que fui posto à prova: despedidas, desamores, amores em vão, amores que ficam, amigos que não mais vi. Abraços que não pude mais dar. Gosto de doce de batata doce, que era, de fato, o doce mais doce, com um frescor de cravo embutido, sabor que não compartilho mais. Revistas em quadrinhos que eu tanto colecionava e lia com os olhos arregalados, declamando todas as onomatopeias. É incrível o poder exercido pelos “zaz”, “zum”, “pow”, simples expressões que se travestiam em verdadeiras imagens. O nome é muito feio, mas que eram tais palavras atrizes de primeira grandeza, lá isso eram…
O tempo continuou circulando do lado de fora da janela. Balançava as cortinas quando abertas, zunia quando fechadas, tentando, a todo custo, entrar na casa. Eu assistia a tudo isso, embora com corpo de adulto, com o olhar de criança.
O que não via propriamente, tratava de imaginar. A imaginação é a lente da verdade que amplia nossos sonhos e os projeta na parede branca da nossa vida. Sem a imaginação o cinema da vida não abre suas portas. Nossos desejos não consomem as pipocas e o guaraná. Sem a imaginação não cruzamos tantas pontes sobre tabuleiros que nos remetem ao mundo inteiro. Não perseguimos nossos bandidos, tampouco bradamos viva aos nossos heróis.
Imaginar é o contexto expresso na nossa alma. Ali tudo é relativo, embora impresso em nosso DNA. Hoje tenho plena consciência de que não imaginar é “desviver”, é deixar a vida passar sem a ela se apegar. E só imagina quem guarda dentro de si a criança que sempre prometeu ser.
Imagina que está apaixonado e só assim vive mesmo um grande amor. Imagina que faz o melhor que pode e, de fato, assim procede. Imagina ideias várias, mas as rugas da memória lhe impedem de perceber que todas elas foram efetivamente exercidas. De uma forma ou de outra, fomos astronautas, bombeiros, cantores, médicos, soldados, enfim, fomos tudo que quisemos ser. E fomos os melhores do mundo, pois nosso mundo, afinal de contas, era o melhor lugar.
Hoje o tempo é preenchido com perda de tempo. As metas projetadas se referem apenas a organogramas, seja de pessoas, seja de objetivos. O ato de viver simplesmente foi sobrepujado, dando origem ao termo sobreviver que, para mim, nada mais é que viver sem imaginação.
Fico exultante a perceber que minha promessa segue firme e forte. Fixo meu olhar nos problemas diários, nas rotinas escondidas sob as cortinas de nossos olhos, impregnadas de sobriedade, de tristeza, de lugar comum. Vejo a cor cinza da fuligem da chaminé da realidade. Aquele fogo fraquinho que sequer queima a mão. Observo as retas monótonas do dia-a-dia, o tom morno de um sol preguiçoso que a vida de adulto assiste. O excesso de sal nas nossas línguas velhas que esqueceram o sabor do doce de batata doce.
O tempo é um cisco nos nossos olhos de menino. Precisamos soprar nossos olhos e ver novamente todas as cores do dia mais feliz do mundo. Devemos ficar acordados até não mais aguentar só prá aproveitar o dia por inteiro. Olhar o tempo da janela, aproveitando cada um de seus tons. Mas tudo isso só é possível se não abdicarmos de nossa lente mais importante, nossa imaginação. Imaginar é manter acesa a promessa.
É nessas que me pego rindo à toa, de qualquer bobagem boa. Com o peito calmo, com a sensação do dever cumprido, do exercício do compromisso assumido. Durmo o melhor dos sonos com a cabeça na almofada macia do tempo, com o sorriso no canto da boca. Ninguém imagina, mas ‘inda continuo a mesma criança que sempre fui. Tem jeito não, de ser diferente…
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Peter,
Só leio que você foi uma criança feliz. E isso vale ouro na lembrança que o tempo teima em escassear.
Um beijo!