Moro em uma região de baixa altitude da cidade, a um quarteirão da avenida Bernardo de Vasconcelos, na qual embaixo passa um córrego subterrâneo. Assim, não tenho uma visão de grande amplitude em meu dia a dia aqui no bairro.
Por isso, sempre quando estou em um lugar alto gosto de observar a vista da cidade. Parece bobagem, mas a paisagem aérea me acalma e me faz meditar sobre a vida de forma lenta e dispersa.
Olhando a vida de cima, a cidade me diz da imensa quantidade de pessoas próximas que jamais irei conhecer, e o quanto possivelmente a rotina daquelas vidas se assemelham com a minha. A vida é sonho, decepção e repetição. Uma sucessão de dias repetidos que nomeamos e numeramos pra nos enganar fingindo de bobo.
Anos atrás descobri uma rua íngreme e apelidei de Morro dos Pensamentos Fluentes. É uma espécie de janela pro céu, quem olha lá de cima não vê a continuidade da rua que desce. É como se ela, poeticamente, acabasse no ar.
É um pedaço da rua Mogi, entre as ruas Javari e Indianópolis, no qual lá de cima tem-se uma vista ampla e muito bonita de parte da cidade, sobretudo à noite.
É um local de pouco trânsito, dificilmente um carro se arrisca a subir uma rua tão íngreme. Nela o mato chega a nascer entre as pedras calçadas da via e há sempre um ventinho refrescante ao anoitecer.
Tentando não pirar de vez na pandemia, passei a andar sozinho pelas ruas do meu bairro a noite. Era um ritual de conexão comigo mesmo. Respirar a vida fora de casa era uma pequena liberdade possível naqueles tempos difíceis.
Certa noite coloquei umas cervejas em uma sacola com gelo me sentei pensativo no Morro dos Pensamentos Fluentes. O vento forte me confortava e, ao longe, as luzes pareciam piscar.
Para meu azar, naquele momento estava tendo uma live sertaneja e eu ao fundo ouvia os vizinhos cantando alto na sua balada caseira. Eu, que odeio esse tipo de música, fiquei por ali bebendo e tentando abstrair meus ouvidos daquela gororoba temática de chifre, sexo & cachaça.
Pra me livrar daquela bomba auditiva, bebi mais rápido que um Opala desregulado. E, meio sambarilove, fui descendo as ruas não querendo voltar cedo pra casa. Por isso, mais adiante, resolvi desviar do caminho de casa e passar por uma rua que me traz memórias afetivas.
Andando devagar no meio da rua Tapira, fui rememorando que ali, muito antigamente, passava o ônibus 8209 Cercadinho/Renascença. Achava Cercadinho um nome lindo, imaginava esse bairro com nome diminutivo um lugar bucólico, quase rural. Ainda criança, planejava pegar o ônibus e conhecer seu ponto final. Anos depois descobri que Cercadinho é nome de um córrego na região oeste de Belo Horizonte e que o ponto final dessa linha era em uma favela. A linha 8209 acabou e eu ainda hoje não conheço essa região.
Minha memória remexia gavetas empoeiradas pelo tempo, quando passei em frente ao antigo colégio Pitoquinho, onde em 1985 fiz o pré-primário. Lembro com clareza de ter participado de uma grande festa lá quando Tancredo Neves foi eleito presidente da República.
A felicidade dos professores, do casal Tio Ailton e Tia Naná, donos do colégio, me contagiou. Lembro dos balões verde e amarelos contornando a bandeira do Brasil, do Hino Nacional e da liberdade que se anunciava após 21 anos de arbítrio.
Senti que aquele aquele dia era uma virada definitiva na história do país. Mesmo não sabendo ao certo o quê politicamente se passava, eu simplesmente senti. E sentindo, entendi.
Triste saber que Tio Ailton hoje, já senhor de idade, é bolsonarento, espalhador de fake news e ansioso pela volta do regime que tanto comemorou seu fim. Tempos sombrios esses que vivemos… A onda reacionária roubou nossas cores e desviou os símbolos da pátria para a volta do projeto fascista dos militares, agora com o Debatedor do SuperPop a frente.
Mais adiante, observo que rua Tapira tem um jeitão de cidade pequena, com árvores frutíferas e casas antigas com alpendre. Quando estudei no São Geraldo Magela, em 1989, iludido, achava que se seguisse direto essa rua toda a vida, sairia na minha escola no bairro Floresta.
Lembro que naquele ano o colégio Magela fez uma eleição presidencial interna, para ver em quem, dentre os muitos candidatos concorrentes, os alunos elegeriam Presidente da República. Teve passeata e tudo pelas ruas do Floresta.
Mário Covas, do PSDB, ganhou. E com uma ampla margem de votos.
De sacanagem e pela zoeira de sempre, votei no Marronzinho. Que teve apenas meu solidário voto.
Curioso que em nosso ensaio infantil e democrático, ninguém acusou fraude nas urnas, abraçou um caminhão em movimento, tentou se comunicar com ET’s pelas luzes do celular e muito menos foi espernear pedindo golpe na porta dos quartéis.
Enquanto em meus devaneios aleatórios eu viajava gostosamente nas memórias do tempo, absolutamente do nada, me deu uma incontrolável vontade de cagar.
Em poucos passos, já de volta à vida real, tive a certeza de que não conseguiria segurar até chegar em casa. Faltavam seis quarteirões e eu, suando frio pela angústia de andar travando as pregas, entendi que estava lascado.
(continua na semana que vem…)
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