Coisa mais rasa (e, infelizmente, e cada dia mais comum) é reduzir uma pessoa ao seu comportamento. Recortar um fragmento do todo e tomá-lo como a verdade inteira.
Mais do que raso, é triste. Retirar do outro um pedaço que me parece estranho, diferente (e repugnante, até), atribuir-lhe um juízo de valor negativo, projetando o mal do mundo (que habita em mim mesmo) sobre ele, transformando-o em um objeto de repulsa, de negação, de exclusão.
E assim, esmaga-se toda a capacidade simbólica de troca, partilha. Se há somente o bem em mim e o mal no outro, não há diálogo, possibilidades de comunhão. É a pobreza das dicotomias, da polarização, chega a ser mesquinho, cruel.
É isso o que os fiscais da moral e bons costumes de plantão estão fazendo sobre a aparição apoeótica da Madonna em território tupiniquim. Fácil é criticar, difícil é fazer igual.
Os patrulheiros da alegria alheia, recalcados de Adão e Eva não se aguentam. São incapazes do riso, da diversão, do prazer nesta vida (esperam pacientemente a próxima) e condenam o outro.
Mas Madonna é um substantivo feminino. Madonna é uma mulher. Madonna tem 65 anos, é uma idosa. Uma mulher idosa que goza e que há mais de 40 anos usa sua música para entoar essa bandeira. Madonna já namorou até Jesus.
Mas não pode. A mulher que tem desejo é perigosa, a mulher que goza é pervertida, ainda dizem os homens. Melhor ser conformada, frustrada e insatisfeita que mal falada. “Esquecem-se” da intrínseca (e ocultada) relação de poder que existe por trás do sexo. Afinal, de onde viemos todos?
Madonna é uma artista, uma performance. E usa o palco como ninguém para colocar o dedo na ferida do moralismo, desafiar tabus, denunciar as violências do machismo, do racismo, da homofobia, para combater preconceitos.
Naquela noite, homenageou as vítimas da Aids, colocou em cena diversos ícones de peso honrando a nossa brasilidade: Cazuza, Renato Russo, Betinho, Sandra Bréa, Wagner Bello e Caio Fernando de Abreu, Marina Silva, Renê Silva, Elza Soares, Caetano Veloso, Daniela Mercury, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Mano Brown, Abdias do Nascimento, Pelé, Cacique Raoni, Paulo Freire, Marielle Franco, Sueli Carneiro, Zaya Guarani, Txai Suruí, Sonia Guajajara, Irmã Dulce. Mais patriótica que isso, não consigo imaginar.
Basta estudar um pouquinho sobre eles pra saber que não é coisa pouca. Mas, em vez de olhar pros telões, os ressentidos em alerta preferiram focar na genitália e na literalidade dos gestos. Não perceberam que Madonna é metáfora. Madonna foi, é e sempre será.
Ninguém é obrigado a ouvi-la nem mesmo gostar dela. Mas precisa entender os debates que ela suscita e as vozes que ela ecoa. Gracias, Evita.
(Como crítica, eu só não gostei do playback e de não aparecer o Bituca).
Fonte:
https://gshow.globo.com/tudo-mais/pop/noticia/famosos-homenageados-em-show-da-madonna-agradecem-por-serem-lembrados-que-honra.ghtml
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