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O QR CODE

Peter Rossi

A pandemia, embora ainda recente, já “comemora” quatro ou cinco anos. Muitas mudanças foram introduzidas em nossos hábitos, sendo as mais conhecidas os seguidos passeios a farmácias e supermercados.

De fato, muitas coisas mudaram desde então. Estamos vivos para contar essa história.

Além do uso contínuo das máscaras, que entupiam o porta-luvas dos nossos carros, não largávamos os potinhos de álcool-gel. Um parêntesis: porta-luvas é o que a juventude chama de porta-treco, até porque luvas já não se usam mais.

Tudo absolutamente necessário, havemos de reconhecer.

Mas essas mudanças de hábito contribuíram para a inserção em nosso cotidiano de medidas que, infelizmente, acabaram por ser eternizadas. A pandemia se foi, mas algumas mudanças mimetizaram em nossas vidas.

Falo, especificamente, dos cardápios dos bares e restaurantes. Logo que foram autorizados a voltar a funcionar, tais estabelecimentos passaram a adotar o cardápio digital, acessível através do chamado QR Code, que nada mais é que um desenho difuso, sob a forma de um quadradinho pontilhado, que remete nossos celulares a um determinado site. Ali, após algum deslizar de dedos, aparece o cardápio tão esperado.

Para os desavisados, aquele quadrado mais parece um quadro de arte moderna, ainda que de gosto duvidoso.

Hoje, os tais QR CODE abrem qualquer coisa!

Muito cá entre nós, existe coisa mais antipática do que cardápio digital? O que a gente curte mesmo é o cardápio impresso. Ali, nos deleitamos a observar todos os pratos da casa e no mesmo passar de olhos, comparamos o primeiro prato da lista com o que está no último lugar. Com os olhos vamos e voltamos a escolher.

Existiam alguns cardápios mais garbosos ainda, com fotos dos pratos! É bem verdade que nem sempre a propaganda correspondia à realidade, mas ainda assim, eram mais “apetitosas” essas cartas.

O chato do cardápio digital nem a isso se presta. Embora venha com fotos de última tecnologia, a pequena tela dos celulares nos obriga a subir e descer e quando chegamos ao final das ofertas, nos esquecemos daqueles pratos que estavam em primeiro lugar. Somos obrigados a começar tudo de novo. Um Deus nos acuda, essa é a verdade!

Eu não lido bem com cardápios digitais. Ainda bem que alguns restaurantes se atentaram para essa antipatia que penso ser coletiva e adotaram, ainda que de maneira alternativa, o cardápio de papel.

Os cardápios, antes de qualquer coisa, são convites à nossa imaginação. Ao ler os principais ingredientes dos pratos ali descritos, nos permitimos viajar nos sabores que irão acalentar nossas papilas. Os cardápios de papel são de leitura obrigatória. Desafio alguém a me dizer que, sozinho numa mesa de restaurante, nunca leu o “menu” de “cabo a rabo”. Claro que leu!

Os cardápios digitais são pretensiosos e arrogantes, como a não pretender enfeitiçar nossos desejos. Estão ali, espalhados naquela telinha e pronto! Quem quiser que peça o prato, o cardápio não está nem um pouco preocupado.

Os cardápios originais, alguns vestidos em capas de couro, solenes como um livro, servem para esconder nossas caras de espanto com o preço dos vinhos, por exemplo. Servem também para ocultar nossa presença quando um desafeto qualquer adentra o restaurante.

Os digitais, ao contrário, através do brilho emanado das telas, nos expõe em demasia e não permitem que escondamos nosso temor com o preço da conta.

Outra coisa, com o cardápio em mãos, sentado ao lado de nossas amadas e eternas namoradas, com um verdadeiro biombo em mãos, podemos roubar os mais tenros beijos.

Com o digital, nada disso! Se não ficarmos espertos, é perigoso que o próprio cardápio eletrônico escolha os nossos pedidos. Aliás, não estamos longe disso. Simples busca de determinado artigo nas ondas cibernéticas nos faz destinatários de ofertas de coisas similares. Somos bombardeados com ofertas de máquinas de lavar roupas, simplesmente porque ouvimos um barulho estranho nas nossas e fizemos uma pesquisa de preço. Ninguém merece!

Esta crônica, além de um desabafo, traz consigo um pedido aos proprietários de bares e restaurantes: por favor, voltem a adotar os cardápios físicos, os impressos em papel. Tudo bem se os jovens preferem o “buraco negro” das telas dos celulares. Que sejam felizes assim. Confesso que nós somos também, mas nem tanto. Ficamos até mesmo reféns dessas maquininhas malignas, mas conservamos em nós o que de melhor somos. Nossos sentimentos, medos e expectativas ainda estão conosco, não estão na nuvem!

Essa tal de nuvem que ninguém sabe onde fica e se não se desintegrará na primeira chuva. Eu heim!?

Aceito, convivo, observo. Prefiro o beijo ao suspiro, o abraço às lives, o sorriso ao invés dos likes. Estar perto, pra mim, é literalmente estar junto. Ainda não embarquei na astronave que destrói distâncias e me avisa que o mundo é logo ali.

Sei da coexistência entre o material e o imaterial. Entre a presença e a imagem holográfica, mas não nasci com o sentimento de que a vida é transmitida via satélite.

Tudo bem, vou respeitando todas essas mudanças, com algumas me acostumando, com outras não, mas, com o pulmão cheio de ar, eu clamo: devolvam-me os cardápios! Sem eles posso estar fadado a morrer de fome!

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