Capítulo 5
Era três e vinte da manhã quando o celular tocou, despertando Úrsula de um sono profundo de muitos sonhos. Nesses sonhos ela podia ser tudo, e quando acordava, percebia o vazio que sentia quando entendia que não era nada daquilo. Olhou para o lado e viu Felipe enrolado nas cobertas. Tinha os cabelos grisalhos embora fosse mais novo que ela, e o corpo era magro, como se tivesse esquecido como se sustentar.
Úrsula se levantou assustada. Embora dormisse com o celular debaixo do travesseiro, precisava se levantar para recuperar o senso de direção. Ao achar o aparelho e perceber a hora, uma sensação de formigamento percorreu todo o seu corpo. “Alô” disse com a voz embargada de quem não sabe o que está fazendo. “Úrsula? Você precisa vir aqui no posto de coleta 2. Rápido. Algum sem teto tentou invadir enquanto os aparelhos de compressão estavam ligados. Está uma bagunça. Todo mundo desesperado”. Úrsula olhou para Felipe que continuava a dormir, impassível. A respiração leve parecia desconhecer os dissabores do mundo real. Nada para ele era real. Passava mais tempo em jogos de realidade virtual do que realmente fazendo alguma coisa com os músculos que tinha. Era cheio de vazio, tudo e nada. “Ok. Estou indo”.
Úrsula trocou de roupa com uma rapidez comum. Não passava muito tempo se arrumando e não se importava. Haviam mais coisas importantes a fazer, mesmo sabendo que no final não existia nada. A ida até o posto de coleta 2 foi tortuosa. A cidade estava barulhenta e as luzes ofuscavam sua visão. Odiava o trabalho de gerente de posto de coleta, mas tinha lutado para chegar até aquele cargo e era a única coisa pela qual tinha lutado na vida. Mas agora que o tinha, odiava. Não podia jogar fora como as pessoas faziam com coisas que não gostavam mais. Não existia postos de coleta para cargos de gerentes de posto de coleta.
Estacionou o dirigível perto do carro da polícia. Não queria estar ali. Ninguém queria estar ali. Gabriel estava com a mão no quadril encarando o corpo inerte. Levantou os olhos quando sentiu Úrsula se aproximar, e começou a falar antes dela perguntar: “Foi um acidente. O carrinho limpador achou ele quando uma das pás começou a emperrar no turno da noite. O vigia veio até aqui para verificar.” “Ele tem algum documento?” “Sim, a polícia está com a carteira dele”.
Úrsula foi até uma detetive que analisava um cartão com uma lanterna. Ela não percebeu a sua presença e se percebeu, pareceu não se importar, ainda assim disse: “Ele não é um sem teto. Tem um teto pequeno, mas tem um. Mora em um dos apartamentos minúsculos da ala norte. João Costa Agosto”, disse a detetive. “Alguma informação de contato?”, perguntou Úrsula. “Estamos procurando no sistema. Muitas pessoas entram aqui?” Perguntou a detetive, ainda sem se identificar. “Não deveriam, mas às vezes alguém consegue passar pela cerca. Infelizmente não podemos controlar todo o lugar, aqui é enorme”. Um policial carrancudo cortou a linha de pensamento de Úrsula, chamando a detetive. “Detetive Andréa, achamos um contato”. Úrsula viu a detetive se afastar pensando em quantos casos ela já tinha acompanhado hoje, e como dar a notícia do falecimento de um ente querido não parecia ser um problema para ela.
Úrsula voltou para junto do corpo e se abaixou para olhá-lo. Ele tinha um band-aid na testa e os olhos fixos em algum ponto a frente. Pareciam clamando, pedindo por alguma coisa. Se ela fosse religiosa, diria que se pareciam com dois planetas, que, antes cheios de vida, agora vagariam para sempre vazios no nada.
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“Só” é um conto de 10 capítulos, que serão publicados individualmente semanalmente.
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