Capítulo 4
“O que aconteceu com você?”, perguntou Carla enquanto ele tentava pregar um band-aid naquela linha vermelha indesejável que ornava a sua fronte. Ele tinha voltado do posto 2 ao cair da noite. Embora conhecesse as ruas com a palma da mão, tinha a impressão de que não conhecia mais as pessoas e também temia não ser mais reconhecido por elas. Ela estava parada atrás dele, no banheiro minúsculo do apartamento no vetor norte.
Vendo ela pelo reflexo do espelho, João reconheceu a figura miúda de olhos grandes e sobrancelhas grossas que ele havia conhecido na faculdade. Carla tinha ajudado o estudante de astronomia depois dele ter dado o seu discurso sobre a criação do universo no refeitório e cair enquanto tentava voltar para a sala de aula. Carla e João haviam, juntos, o levado até a enfermaria. O ser desacordado ainda balbuciava alguma coisa sobre como “devíamos continuar procurando” que fez Carla soltar uma risada contida. Ela olhou para João enquanto ria, e depois disso ele não prestou atenção em mais nada.
“Nada”, disse João, quando não havia mais nada a ser dito, “tropecei vindo para cá”. “João, precisamos conversar”. Ele sabia que precisavam. Carla tinha se apaixonado pela ideia de se mudar dali. “Um lugar maior”, ela insistia. A verdade era que o trabalho de projetista de jogos a consumia, do mesmo modo que o trabalho de arquitetura de esgoto e água consumia ele. Era tudo tão grande e, ao mesmo tempo, tão pequeno. Não parecia nada perto de todas as coisas que existiam, mas, ainda assim, para ela era importante. Carla odiava aquele lugar, mais do que odiava a cara que João fazia quando não tinha a resposta para alguma pergunta dela ou quando não fazia nenhum esforço para tê-la. “Carla, não podemos ir. A nossa vida é aqui, eu, você, e tudo o que somos. Somos isso, Carla, só isso. E…”. “E tudo seu tem um só. Só isso, só aquilo. É só um cansaço, é só um mal-entendido. As pessoas sentem coisas, João, embora você seja incapaz de sentir. Você não quer ir porque vai ficar longe daquele posto de coleta 2. Têm postos de coleta espalhados por todo planeta! Onde tem gente, coisas são jogadas fora, e eu não acredito que você irá me trocar por aquilo!” Os olhos dela pareciam dois buracos negros, sugando tudo, sugando a sua alma.
João sentiu que não conseguia se mover, Carla estava em todos os lugares, em todos os cantos de olho. Carla era tudo o que tinha, se não a pudesse ter não teria mais nada. Aquela sensação misturada voltava a invadi-lo. Tudo o que possuía iria parar em um posto de coleta em qualquer lugar do mundo. O posto 2 era só um número, assim como era o 3, o 4 e o 255. Tudo eram números se seguindo. Se se mudasse, talvez pudesse recuperar um pouco da sua alegria. Talvez a angústia estivesse impregnada ao lugar, não na sua alma. Se não fosse, só teria o posto de coleta 2 como abrigo, e todo o lixo de todo mundo como aconchego. Antes que pudesse responder, sentiu o planeta oscilar de novo. Só que não era a Terra que balançava, era ele. Caiu, não sem antes ver os buracos negros dos olhos de Carla se transformarem em supernovas e virem em sua direção.
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“Só” é um conto de 10 capítulos, que serão publicados individualmente semanalmente.
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