Neutre – Fonte: Pixabay
Daniela Piroli Cabral
danielapirolicabral@gmail.com

Essa história me traz memórias de quando eu tinha meus sete ou oito anos e estava sendo alfabetizada. Lembro que, leitura de um dos meus primeiros textos, lá estava o “a” entre parênteses. Fiquei instigada com presença daqueles símbolos “abraçando” a vogal. O incomodo veio quando a explicação chegou, através das pacientes palavras de minha mãe:

Na língua portuguesa, é o “o” quem manda. Quando a gente quer incluir também a mulher, põe o “a” entre parênteses ao lado.

Eu que não era letrada nas letras do machismo estrutural, me senti alijada e me calei indignada. Por que é o “o” que predomina?

Novamente essa questão me tocou quando, já maior de idade e estudante de psicologia, me deparei com o seguinte cartaz: Vagas para psicólogos(as). Por que usar o “o” dominante em um contexto profissional na qual a carreira é predominantemente feminina? Não me senti de novo representada e em determinadas circunstâncias passei a adotar, por conta própria, o “a” da maioria: Psicólogas(os).

Trago estes exemplos para mostrar a importância de de falar e de problematizar o uso da linguagem imparcial. Recentemente, a Argentina proibiu o uso da linguagem neutra em seus documentos oficiais. Entendo os argumentos dos fiscais da norma culta, mas é importante pensar na linguagem enquanto campo de expressão humana, em um contexto culturalmente localizado que é dinâmico. A função primordial da linguagem é a comunicação e a expressão de necessidades humanas.

Por mais que a gente não aceite, ache “mimimi”, uma provocação desarrazoada às normas da língua, ela tem vontade própria e muda sozinha, a despeito daqueles que a querem controlar. Taí o exemplo da linguagem tecnológica da internet, zapzap, blogues, arrobas que não me deixam mentir. São a prova viva de que, mesmo não dicionarizadas, fazem parte do cotidiano, da nossa forma de interação e de subjetividade.

Um outro ponto importante é que a linguagem é e sempre foi campo de disputa de poder discursivo, lugar de exercício de reconhecimento ou de discriminação e de práticas de violência (física ou simbólica). Como eu vivi na infância, tem muita gente que não se sente representada pelo “a” nem pelo “o” e aceitar que elas possam ter seu campo de identificação e e lutar por essa legitimidade é fundamental. O reconhecimento das existências passa também pelo crivo linguístico.

Na semana do dia da mulher, espero que possamos sair do silenciamento a que historicamente fomos impostas, mas que também possamos levar conosco as denúncias e as necessidades daqueles que também não tem direito ao uso pleno na linguagem para expressar sua dignidade, manifestar seus desejos, exercer sua cidadania.

Daniela Piroli Cabral

Recent Posts

Feliz Natal

Mário Sérgio Todos os preparativos, naquele sábado, pareciam exigir mais concentração de esforço. Afinal, havia…

11 horas ago

Natal? Gosto não!

Rosangela Maluf Gostei sim, quando era ainda criança e a magia das festas natalinas me…

17 horas ago

Natal com Gil Brother

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Com a proximidade do Natal e festas de fim de ano, já…

1 dia ago

Cores II

Peter Rossi Me pego, por curiosidade pura, pensando como as cores influenciam a nossa vida.…

2 dias ago

Corrida contra o tempo em Luxemburgo

Wander Aguiar Finalizando minha aventura pelo Caminho de Santiago, decidi parar em Luxemburgo antes de…

2 dias ago

Assumir

Como é bom ir se transformando na gente. Assumir a própria esquisitice. Sair do armário…

3 dias ago