Quando minha avó Nazinha voltava de Correias era uma alegria só. Ficava na espreita dos presentes que iria receber. Ficava tão elétrico que me esquecia, às vezes, do melhor deles: um abraço aconchegante, quentinho, com um cheirinho próprio de roupa que fica no fundo do armário.
Minha vó era tudo de bom que uma vó podia ser! Mais ainda, às vezes se esquecia de que era vó, e pensando ter a mesma idade que eu, rolava no chão, dançava e sorria, sorria largo com todos os dentes cansados à mostra.
Falava dos presentes e dois, de maneira especial, marcaram a minha infância: um enorme saco plástico com miniaturas de carrinhos de plástico. Coisa muito simples, dividido em quatro cores únicas, com as rodinhas pretas, rodinhas que não giravam, é preciso lembrar. Os modelos: fusquinha, Kombi e um terceiro bem primitivo, que bem poderia ser um Chevette ou qualquer outro modelo que se pudesse desenhar com três ou cinco traços retos. Mas eu amava aqueles carrinhos. E tantos … Contava-os, separava por cor, por modelo, enfim, era uma frota única a povoar o meu imaginário.
Fazia no barranco de argila, com o auxílio de uma simples colher, uma estradinha um tanto inóspita e perigosa e ia enfileirando todos os carrinhos, um atrás do outro, num mágico engarrafamento. Ficava horas e horas a simplesmente contemplar. Só isso. Nem uma piscada, nenhum outro gesto. Era eu ali, paradinho a admirar o desfile estático dos meus carrinhos.
Outro presente que muito me agradava eram as bolinhas de gude. Minha vó era extremamente gentil nesses presentes baratinhos e, comprando-os em grande quantidade, fazia-os parecer muito melhor do que na verdade eram. Engano meu, fosse um só, seria o melhor, hoje tenho a exata convicção disso.
As bolinhas de gude eram tão dóceis, coloridas, brilhantes. Tão bom tê-las nas mãos, quantas coubesse, escorrendo por entre os dedos. O papão era um buraco no chão de terra e ali era o destino final das minhas bolinhas. Como eu gostava disso! Prender o polegar recolhido atrás do indicador, mantendo a bolinha entre os dois para imprimir uma velocidade ímpar. As bolinhas voavam e batiam umas nas outras como a soltar faíscas.
Minha vó me deixa saudades, assim como as tenho dos carrinhos e das bolinhas de gude. Quanto a esses últimos até que passo sem, mas que vontade de ter vovó Nazinha aqui pertinho, com seu abraço com cheiro de fundo de armário. É uma pena, ela partiu quando ainda não tinha me dado conta de sua importância. Sentia sua plenitude no meu peito, mas nunca consegui corresponder e, com o rosto em seu colo, chorar de saudade e dizer que a amo demais, que ela era o meu sonho de criança, era tudo o que eu precisava.
Hoje ainda conversamos muito. Mas não é a mesma coisa. Não mais vejo seus olhinhos apertando quando sorri. Continuo a receber seus conselhos e até seus afagos, mas não tenho mais como retribuir o que nunca fiz.
Às vezes, à noite, sinto até aquele velho cheirinho de fundo de armário e embalado engato uma conversinha boa que dura até o chegar da manhã. O mais divertido é que eu pergunto e acabo por responder, com a doce ilusão de que minha avó é quem estaria falando. Será que não?
Nós somos a poeira juntada ao longo da vida, retirada de todos os móveis nos quais nos sentamos ou tocamos, de todas as luzes que nos iluminam, de todas as janelas sobre as quais nos debruçamos.
As janelas da casa de minha avó tinham cortinas pequeninas, branquinhas, de crochê que ela mesma tecia. Por ali o sol entrava sem pedir licença, e cuidava apenas de nos aquecer.
Os sofás tinham paninhos sobre os braços, como a demonstrar que estavam sempre vestidos para uma festa. Adorava enfiar meus dedos pequenos nos buraquinhos do crochê, preenchendo espaços que eram mesmo destinados a essa brincadeira.
Essas imagens estão definitivamente presas à minha consciência. São o palco de tempos felizes que se repetem a cada dia, pela simples lembrança. É a poeira que juntamos, que se acumula em nossas vidas, um tantinho de cada um, um todo de todos, dos presentes, dos brinquedos, dos sorrisos, das avós, das janelas com cortinas brancas.
Às vezes dou de pensar que o movimento dos dias acaba nos levando longe de tais lembranças. Nada disso, elas estão arraigadas em nós. Impregnadas em nossa alma. A vida é mesmo esse somatório de sonhos vividos e imaginados, alguns que nós esquecemos, outros que teimam em nos acompanhar por toda a nossa existência. Sonhos soltos, breves, longos, lívidos, assustados, apaixonados. Sonhos com cheiro de manhã de sol, sonhos até com cheirinho de fundo de armário. Esses, então, são os melhores de se viver.
Acho que todos nós temos um armário para guardar os sonhos e as lembranças. As portas nunca se trancam, estão até meio desajustadas, mas juntas, prontas para se abrir e abafar a distância dos pensamentos. Viver é abrir as portas dos nossos armários sempre que nos der vontade, olhar cada cantinho do seu interior e sentir o cheiro bom que vem lá do fundo, como se fosse um longo abraço de vó.
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