Quem sabe de tudo não fale
Quem não sabe nada se cale
Se for preciso eu repito

(Marisa Monte)

 

Daniela Mata Machado

 

– A menina de Antônia reprovou na escola.

– Foi mesmo, Lúcia?

– Pois foi. Eu ofereci de dar aulas particulares, mas Antônia é muito orgulhosa e acho que nem olha direito aquela menina, né? É muito egoísta e só pensa nos próprios problemas. Agora está aí… vai a menina repetir de ano porque a mãe não cuida.

A filha de Lúcia é boa aluna. Se enfia no quarto e estuda dia e noite. Marcos, o marido de Lúcia, não gosta de acompanhá-la na igreja, nem nas festas da paróquia, nem nas casas de parentes. Mariana, a menina, que antes acompanhava a mãe pra baixo e pra cima, agora agarrou mesmo nos livros e nos cadernos e sempre se esquiva dos convites de Lúcia:

– Não posso ir com a senhora, mãe. Preciso estudar matemática.

Lúcia se gaba da filha que se destaca na escola, e assedia a pobre da Antônia com a oferta de aulas particulares para Letícia. Antônia sente-se invadida e desrespeitada, mas Lúcia é amiga antiga, “quase da família”, e ela suporta, apenas recusando as aulas. Sua vida tem problemas demais e a mãe de Letícia sabe que Lúcia não pode ajudar a resolvê-los.

Curar as próprias dores exige coragem. É preciso entender o que dói, onde dói e porque dói. É preciso aceitar que a dor é dentro. Pouca gente consegue. Por isso Lúcia prefere cuidar dos problemas de Antônia. Falar mal de Antônia. Dizer que Antônia não sabe cuidar da própria filha. Enquanto isso, Mariana mergulha nos livros e carrega no olhar uma tristeza inconfessa. A mãe segue comandando a fofoca do bairro e o grupo de orações da igreja e, ao chegar em casa, vai para o whastapp ou para a porta de casa, tecer comentários sobre as outras vidas.

Seu Marcos gosta de Lúcia. Não gosta de estar ao lado dela na igreja e não se sente bem nas festas onde ela tem sempre algo a dizer sobre o que quer que seja, mas gostaria de conhecer um pouco melhor o silêncio dela. Lúcia é quem teme o próprio silêncio. Faz um barulho incessante, que invade o ar e muitas vezes perturba o sossego alheio para não entrar em contato com as dores que talvez apareçam quando não houver nenhum som.

Mas é dezembro. É o mês derradeiro de um ano que fecha ciclos longos e dolorosos. E quando Antônia esqueceu o telefone em cima da mesinha de cabeceira e partiu para viver a sua própria história, Lúcia entendeu que talvez o silêncio seja a chave. Ela ainda está pensando em planejar uma festa na igreja, uma viagem com as mulheres do grupo de orações e tem abastecido com notícias e fofocas os grupos de whatsapp da vizinhança. Mas alguma coisa aconteceu quando, por um breve momento, ela foi silenciada pelo silêncio de Antônia e olhou, de relance, para dentro de si mesma.

O silêncio é a chave. É nele que todas as dores brotam e se esgotam. Perdoe a citação descontextualizada, Sartre, mas é que a frase é muito boa inclusive pra ser contradita fora de contexto: o inferno não são os outros, o inferno é a gente mesmo, querendo consertar os outros porque não suporta ver os nossos próprios estragos. No entanto, é dezembro. É tempo de se livrar do que não precisa seguir com a gente. Antônia largou o celular pra trás e foi viver a sua verdade. Eu, você e Lúcia podemos fazer o mesmo. E talvez assim, mesmo sob o jugo de um sisudo Saturno, que será o regente de 2024, possamos encontrar um pouco mais de leveza. Porque a verdade, depois de encontrada, torna-se leve.

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  • São tantas: Antônia, Lúcia, Maria, Nazaré, Geny mas, o que importa é justamente esse momento decisivo, acertar as contas para seguir aceitando a humanidade que há em mim e em cada uma dessas tantas mulheres. Apenas um passo cada dia...

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Tags: Cotidiano

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