Peter Rossi
Minha meninice tinha pouso num paraíso: Rua da Paz, número 168, Quintas, em Nova Lima, Minas Gerais.
Uma casa grande, fazendo esquina com a rua, uma rampa danada do seu lado esquerdo, toda forrada de plantas. Não tinha muro, só cerca, daquelas cheias de folhas verdinhas. No fundo só uma telinha fraca, pra não deixar gambá e cachorro entrar. Gato entrava de qualquer jeito, tivesse tela ou não. Acho que eles não só saltam de qualquer lugar, eles encolhem pra passar entre os losangos de arame. Deve ser isso mesmo, eu nunca entendi direito.
No meio da rampa, um portão de ripa, em duas metades, uma sempre presa ao chão e a outra abrindo e fechando, ao girar da tramela. De uma cor que um dia foi verde, mas que agora estava cansada. Não tinha essa de campainha. Quando alguém chegava até a porta de alguém danava a aplaudir. De dentro de casa, ao ouvir as palmas, a gente tinha certeza da chegada da visita.
Algumas eram especiais para mim e delas não me esqueço.
Dona Maria, uma velhinha mirrada, magrinha, com uma lata de massa corrida de vinte quilos na cabeça, sob a lata um turbante móvel de pano a diminuir e aconchegar o peso da lata.
Uma lata comum, com um pedaço de cabo de vassoura atravessado, transformando-a em balde. Tudo tão limpinho, com cheiro de coisa boa.
Dentro da lata um monte de toalha molhada, todas de um amarelo pálido. Minha mãe atendia e pedia: me dê dois quilos de “fato”. Dona Maria tirava então de uma bolsa feita de saco plástico de leite, toda trançadinha uma ferramenta esquisita, parecendo um termômetro. De um lado um gancho, do outro uma argola. No gancho pendurava um pedaço da toalha e segurava na argola, levantando o braço a mostrar a mercadoria. Um ponteiro se mexia e a todos nós conseguíamos ver o peso da toalha, toda molhada. Aquilo era uma balança de bolso, nunca me esqueço disso, apesar de nunca mais ter visto uma.
As toalhas tinham cheiro de vinagreta. Para quem não sabe, vinagreta é um cruzamento de limão com laranja, de um ácido forte, e com um tom dormindo entre o vermelho e o amarelo. Alguns insistem em chamar de limão galego mas não é a mesma coisa. Vinagreta é uma coisa, limão galego é outra. Podem até ser primos, mas são diferentes. E não insistam, quem teve meninice nessa época sabe que falo a mais pura verdade.
Pois bem, todas as toalhas tinham um cheirinho bom de roupa lavada, com essência de vinagreta. Não eram toalhas a bem da verdade, só se pareciam, mas não eram pra enxugar, eram prá comer. Meu pai chamava de dobradinha o que Dona Maria insistia em falar que era “fato”. Pouco importa, sei apenas que era delicioso. Minha mão estendia as pequenas toalhas na pia da cozinha e esfregava com mais vinagreta, depois lavava com água e, como se não bastasse, tratava de cozinhar aqueles “panos” numa panela funda, abarrotada de água até a borda. E aquilo fervia e fervia, deixando um cheirinho especial no ar da cozinha.
Depois de cozido minha mãe cortava a dobradinha em pedações pequenos, retangulares, do tamanho de um chocolate “Bis”, fazia um caldo grosso de tomate e cebola, acrescentava batatas cozidas e feijão branco. Nunca esquecia das rodelas de paio e dos confetes de cebolinha. Colocava tudo numa travessa transparente, de vidro. Comida especial só se podia fazer e servir se estivesse dentro de travessas de vidro. Ia tudo pro forno, um pouquinho, dizia ela “só prá encorpar” e seguia direto prá mesa. Algumas colheradas de arroz branco e as toalhas de “fato” da Dona Maria se transformavam de um manjar dos deuses.
Falava das visitas ao nosso portão de ripa.
Outras palmas se seguiam e dessa vez era Dona Conceição com um balaio imenso. Ao contrário de Dona Maria, Conceição era bem mais jovem. Grande, gorda, sempre de vestido estampado e um lenço na cabeça. O balaio coberto com papel de embrulho cor de rosa, daqueles que nascem em rolos nas vendas do interior e servem para embrulhar qualquer coisa que se queira.
Dentro do balaio uma das melhores iguarias do mundo: bolinho de feijão! Conceição era uma salgadeira daquelas de mão de fada. Nos dias de semana atendia aos meninos famintos do Grupo Escolar Emília de Lima, o “Grupão”, que a tantas saudades de remete. Ela morava ali, numa casinha de alpendre dentro do terreno da escola mesmo, num cantinho lateral. Vendia empadas, pastéis, bolinhos e copos de suco, que na verdade era apenas “Ki-suco”, mas maravilhosamente doces, saborosos. A venda de porta em porta ocorria aos sábados. Nesse dia poderíamos esperar que, com certeza, por volta das três da tarde as palmas frenéticas anunciavam bolinhos de feijão querendo entrar pelo portão de ripa de nossa casa.
Até hoje sou apaixonado por bolinho de feijão. Já comprei de outro fornecedor de minha terra. São bons, mas não iguais aos da minha infância. Mudaram os bolinhos ou mudei eu? Claro que fui eu. Naquela época os sabores eram poucos e qualquer um especial era efetivamente especial. Hoje, iguarias às centenas não nos permitem o poder da escolha. Observem que ao perguntar a qualquer cidadão qual o seu prato preferido ele sempre dirá três ou quatro. É sempre assim.
Eu não! Continuo firme no propósito de que gosto de bolinho de feijão não tem outro igual. Seja os do Bar do Marinheiro em Lagoa Santa, ou os da banca do Mercado do Cruzeiro.
No nosso portão de ripa quase verde recebíamos felicidades em gotas.
E o que é melhor, sempre precedidas de um sonoro aplauso.
Pensando bem, refletindo sobre a pequenez dessas coisas, admiro quão grandes eram, a ocupar um espaço infinito na minha vida.
Seja a dobradinha aos domingos, seja o bolinho de feijão.
Acreditasse eu no Olimpo, certeza eu teria que aqueles deuses gregos dormiriam a sesta enfarados de tantas iguarias. Não teriam tempo de cuidar de nossas vidas e, por isso mesmo, talvez o mundo não fosse tão bom!
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Lembranças que despertam as nossas próprias recordações. E como é bom! Obrigado, Peter.
Me lembro também dessas dobradinhas vendidas nas latas. Adorava. Continuo adorando. As lembranças ficam e o estômago pode ser tapeado com a dobradinha do Bar do Primo, que acompanhada de um tinto dando lugar ao ki suco, nos deixa tão felizes como antes.
Um beijo, amigo!