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Tudo por causa de umas bombinhas

Peter Rossi

Festa no interior é assim: alegria e barulho, crianças correndo para todo lado, uma verdadeira algazarra.

Em Pitangueiras não era diferente. No mês de junho, invariavelmente, eram construídas barraquinhas ao redor da Igreja de Santo Antônio. Tinha canjica, pipoca, pé-de-moleque. Todas as noites as famílias compareciam às “Barraquinhas de Santo Antônio” para comer alguma coisa e deixar os meninos “correrem soltos”.

Para as crianças existiam as barraquinhas de jogos: pescaria numa caixa de areia, tiro ao alvo com espingardas antigas que usavam rolhas como balas e eram chamadas de espingardas de pressão e uma espécie de roleta.

Quem acertasse fazia jus a uma prenda, às vezes um bichinho de pelúcia, uma bola, outras vezes um jogo de dominó de plástico, com peças azuis e bolinhas vermelhas, muito diferente do original. Mas as crianças adoravam.

Me lembro bem de dois garotos bem alegres. Com pernas magras e cabelos pretos que insistiam em cair nos olhos, eles corriam para todo lado, jogando estalinhos no chão, perto dos pés das pessoas que, fazendo a alegria da criançada, fingiam assustar.

Era assim a vida: uns tentando assustar e outros tentando se fazer de assustados, para o delírio dos primeiros. Vida simples e boba, vida feliz, vida que não era atoa, vida que nos provocava saudades infinitas.

Se chamavam Rui e Rodrigo. Eles, na plena meninice, enfiavam por entre as pernas dos adultos, brincando de pique-esconde.

Numa dessas noites seu Arquimedes, que era o porteiro do Cinema da cidade – o Cine Prata, cismou de ir até as barraquinhas e distribuiu entre as crianças umas bombinhas que provocavam um estrondo. Se pareciam com palitos de fósforo, só que a cabeça era mais robusta. Dizem que seu Arquimedes era meio surdo e não ouvia os estalinhos.

A criançada ficou em polvorosa, desculpem o trocadilho. Rodrigo e Rui receberam três bombinhas cada um e ficaram matutando no que fazer com elas. Viam as demais crianças acendendo os apetrechos e correndo. Com o barulho, bem mais forte, as pessoas deixavam de fingir, elas se assustavam mesmo, e muito!

Na noite seguinte, Rui e Rodrigo tiveram uma ideia que iria, entretanto, provocar uma confusão enorme.

Bem perto da lateral da Igreja, tinha uma casinha bege de barrado marrom, com um telhado em meia-água, sombreando uma varanda apertada, onde as irmãs Zenaide e Zulmira ficavam a tricotar. Ladeando a varanda, uma pequena janela sempre aberta, com as cortinas a lamber o vento.

Zenaide e a irmã eram solteironas, ambas com mais de setenta anos, e viviam uma vida simples. Às custas da pensão do pai, que tinha sido servidor municipal, levavam a vida com dignidade, porém com escassos sonhos a almejar.

Durante uma vida inteira, seu José trabalhou como responsável pelo cemitério municipal e entre defuntos e rezas não conseguiu amealhar muita coisa. Recebia um salário pequeno e nada mais. As únicas coisas que a Prefeitura lhe deu foram uma medalha de honra ao mérito que descascou toda menos de um mês depois, isso quando se aposentou, e o funeral da D. Jefinha, afinal seria ele mesmo quem cuidaria do trabalho, embora com muita dor no coração.

Viveu viúvo, com as duas filhas e após árdua luta conseguiu comprar a casinha, ao lado da igreja. Poucos anos depois também faleceu e foi preciso vir um coveiro da cidade vizinha para terminar o serviço.

Era naquele lugar que ainda viviam Zenaide e Zulmira, as irmãs solteironas.

Rui e Rodrigo trataram então de coocar em prática o plano cuidadosamente engendrado. Pé ante pé, abriram o portão preso à cerca da casa, subiram as escadas da varanda e num só golpe, jogaram casa adentro duas bombinhas acesas.

Foi só o tempo de chegarem à rua e ouviram dois estrondos, logo seguidos por gritos das duas velhinhas. Há quem diga que ouviu até o barulho de uma cadeira cair e um corpo frágil bater no chão.

Todos que estavam na quermesse das barraquinhas correram até a casa da irmãs e irromperam porta dentro, encontrando uma delas quase desacordada, com o coração acelerado e a outra a tossir, sentada no sofá, as mãos a afastar a fumaça, com olhos esbugalhados. As agulhas de tricô esparramadas e os novelos de lã desenrolados. Tivessem gatos as duas, e os bichanos teriam se esbaldado com tantos fios.

A bem da verdade não entenderam o que tinha acontecido, talvez estivessem até cochilando, pois a televisão estava ligada, porém muda, sem som algum.

Em alguns segundos, felizmente, perceberam todos que não passava de um grande susto, além de manchas no chão da sala, duas delas, tingindo de negro a cerâmica marrom.

“Quem fez essa maldade?” Perguntou um dos que estava ajudando. As pessoas foram torcendo os pescoços como que a tentar encontrar o malfeitor, de uma hora para a outra. Tudo sem efeito.

O vigário, entretanto, teve uma ideia. Sabia que fora Arquimedes o fornecedor das bombinhas. Soube dele quem foram os agraciados e convocou para o primeiro banco da igreja algo em torno de nove meninos.

– Papai do Céu me pede para perguntar para vocês quem foi que jogou bombinhas na casa das irmãs. Vocês têm que falar agora, senão terão cometido um sério pecado e não sei se conseguirei ajudar a perdoá-los.

Os meninos se entreolharam e não demorou muito para que Rui e Rodrigo assumissem a responsabilidade.

– Pois vão até a beira do altar e rezem, cada um, dez “ave-marias” e dois “pais-nossos”. E rezem direito, senão vou dobrar a pena!

Os meninos se ajoelharam e mãos postas começaram a rezar.

Enquanto isso, o vigário apressou-se a ter com Dona Carola, mãe dos meninos, contando todo o ocorrido.

Rubra de vergonha e também em razão de três copos de quentão, foi até a Igreja e repreendeu os filhos.

– Onde estão com a cabeça? Por que fizeram uma coisa dessas? D. Zulmira e D. Zenaide estão a beira da morte, estão pra morrer e vocês pregam um susto desses? Isso é um absurdo, amanhã mesmo os dois irão comigo até a casa delas e vão pedir desculpas, não tem “meu pé me doi”! E vou, ainda, pensar em um severo castigos pra vocês.

No dia seguinte, alguns minutos antes do começo dos festejos, lá foi D. Carola até a casa das velhinhas. Observou que a janela, naquele dia, fora fechada, mas, ainda assim, bateu palmas na varanda até que fosse recebida. Trazia com ela, além de Rui e Rodrigo, também o vigário.

– D. Zulmira e D. Zenaide, fiz questão de vir até aqui hoje porque meus meninos lhes devem desculpas. Anda, meninos, venham até aqui e façam como eu combinei!

Rui foi o primeiro, saiu de trás da saia da mãe e logo apontou a carinha:

– Por favor, desculpa. Nós não pensamos que as bombinhas iriam assustar tanto assim.

Foi quando Rodrigo tomou coragem e completou:

– É verdade, a gente não queria incomodar, ainda mais sabendo que as senhoras estão à beira da morte, como disse a mamãe …

Há quem diga que o vigário torceu o corpo e fingiu rezar com o terço nas mãos, mas na verdade tentava abafar uma sonora gargalhada.

 

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