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Chuva de Lembranças

Rosângela Maluf

 

Acordo, mas não abro os olhos.

Ouço o barulho da chuva forte que cai lá fora. Será que as janelas estão fechadas? Me ajeito. Me viro de lado.

Acomodo em mim os dois travesseiros e finjo estar dormindo.

Ele me abraça por trás, de conchinha e me coloca sobre o braço dele. Se encosta todo em mim, respira fundo. Sinto seus beijos em meus cabelos. Abaixa mais um pouco e beija com delicadeza o meu pescoço. Continuo a fingir que durmo. Uma sensação tão boa, leve, lenta, lúdica.

Me viro um pouco pro lado dele.

Agora sou eu quem quer sentir outras sensações.

Respiro fundo e ainda finjo dormir.

Nem sei se pretendo acordar. Seu cheiro me enlouquece, uma mistura de perfume, suor, noite, tudo junto, todos os cheiros e sempre os mesmos, bons, muito bons.

Sinto saudades todos os dias, todas as tardes e todas as noites.

Saudades da companhia dele, da sua voz cantando desafinado quando estava feliz. De suas “aulas” de História, que sempre me encantaram, das suas revistinhas de Palavras Cruzadas espalhadas por todo canto. Saudades da sua calma ao cuidar das plantas e das flores no jardim. Jarras que enfeitavam nossa mesa de jantar. Girassóis, meus preferidos!

Adorava a sua coleção de jazz e eu que nem gostava tanto, passei a apreciar, a identificar cada instrumento e a sentir o que o compositor sentira ao escolher cada nota. Já escolhera então os meus cantores & grupos favoritos. Ainda preferia os “blues” e tentava convencê-lo de que eram muito mais sentimento…puro sentimento. Ele apenas ria.

Saudades dos livros lidos na cama, cada um fazendo “psiu”, quando o outro queria comentar o que estava lendo. A gente ria sempre. Às vezes, já tarde da noite, os dois ainda lendo, surgia uma fome. Íamos pra cozinha e tudo que havia na geladeira era colocado sobre a mesa enquanto esquentávamos o café com leite. E a gente esperando em frente ao fogão, abraçadinhos. Juntos o tempo todo. Felizes quase sempre. Briguentos, raramente, mas acontecia.

Às vezes ficávamos, na varanda, conversando sobre qualquer coisa.

De repente, ele parava e me lembrava que deveria contar até vinte. Eu já sabia. Olhávamos um para o outro e, pelo olhar, passávamos o amor que sentíamos. E cada um contava baixinho até vinte. Às vezes, ríamos no final da contagem, mas normalmente ele se levantava, me dava um beijo suave, repetia o beijo duas, três, quatro vezes e dizíamos um ao outro “eu te amo”.

Abro os olhos.

Agora sim, acordo de verdade.

Estou de bruços, então me viro.

Olho para o teto.

Olho para os lados.

Ninguém.

De verdade, só o barulho da chuva.

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