Aquela era uma cidade como poucas são. Nossas cidades tendem a ser especiais, únicas. As cidades, cenários de nossa infância que povoam nossos corações, mas que só quando adultos percebemos.
Minha terra era assim. Simples e plena. Cercada de montanhas, muitas montanhas, todas cobertas de verde e pedras. Mais verde que pedras, é verdade. Como eram lindas essas montanhas. Alcançavam as muitas nuvens. Uma cidadezinha cheia de ladeiras, desenhadas com pedras. Ao lado, calçadas estreitas, nas quais mal cabia um poste. Era assim, ou o poste ou nós a passar por ali. E como nos divertíamos a pisar ora na rua, ora na calçada. Coisas assim, simples, que qualquer criança conseguia fazer.
Como eram muitas as ladeiras, as calçadas se transformavam em escadas. Daí para um parque de diversões, era um estalo só. Existia uma ladeira, que por ser muito íngreme, era cortada por linhas diagonais. Não era uma rua reta toda de pedras, pra subir, a gente tinha que ir da esquerda pra direita, depois da direita pra esquerda, em pequenas inclinações. Chamávamos de zigue-zague. Ela desaguava na praça principal da nossa cidade, incrivelmente plana, ladeada por uma igreja e alguns prédios históricos. Ao centro, diversas palmeiras imperiais desenhavam uma moldura à inversa.
As ruas serpenteavam em curvas sensuais por entre os morros. Minha cidade era um morro só, no qual foram escavados, como escarpas, platôs diversos. As casas, por isso mesmo, não ladeavam, ficavam sempre uma acima da outra. A maioria delas pintada de branco, com as beiradas em azul ou em verde.
No centro, bem no centro, existia uma montanha especial na qual fora feito um buraco enorme, a boca, como todos chamavam. Foi quando criança que descobri que as montanhas de minha cidade eram recheadas de ouro. Os homens entravam boca adentro com picaretas e outras ferramentas e extraíam pedras e pedras. Delas, colhiam o ouro. Minha cidade era conhecida como “Terra do Ouro”. Tudo girava em torno disso. As pessoas viviam, perto uma das outras, tendo o ouro como liga.
Menino ainda, soube que o ouro gostava da argila. Lá existia um pequeno riacho que chamávamos de Rego Grande, mas que na verdade era estreito e raso. Ele cortava boa parte da cidade. Ao lado, uma estradinha de terra acompanhando a mesma trilha. De um lado a estradinha, do outro, barrancos, sempre barrancos. Lembram que falei antes que as casas ficavam uma em cima da outra? Era assim. Nos barrancos milhares de samambaias. Ali as samambaias não ficavam aprisionadas em vasos. Ornavam os barrancos! Medíamos a nossa idade com o alcance de nossas pernas. Se um menino conseguisse deixar um pé na estradinha e o outro no barranco, ultrapassando o pequeno riacho, é porque menino deixou de ser, não era mais.
Era uma cidade especial. As quatro horas da tarde avisava a todos nós que a tarde principiava a terminar. Não precisava relógio. Lá o tempo era contado para nós. E o apito servia para tudo. Era hora de voltar para casa, de estender uma toalha xadrez numa mesa simples e vestindo-a de festa, derramar broa e pão de queijo. Nós, meninos, sorvíamos tudo aquilo com longos goles de café ou de suco de maracujá.
Me lembrei que minha terra tinha pés de maracujá. Aquelas flores roxas, tão lindas, perfumadas como elas só! Tinha pés de goiaba que a gente comia, sem se preocupar se existiam bichinhos dentro dela. As folhas, também com um cheiro e uma textura tão especiais. Nossas mães nos diziam que as folhas das goiabeiras deviam ser usadas para escovar os dentes. Confesso que apertava as bisnagas amarelas de Kolynos imaginando que aquele creme branco era feito com folhas de goiabeira. Sabe-se lá.
Pelas janelas, víamos mangueiras, muitas mangueiras que no final do ano ficavam apinhadas de frutas. Cada uma mais doce que a outra. Quando menino, pegava um caixote e empilhava algumas mangas, na vã esperança de trocá-las por algumas moedas. Não me lembro, é verdade, se algum dia consegui vender alguma, mas era muito divertido tudo aquilo. Preparar o caixote, limpar as mangas e empilha-las, desenhando uma pirâmide.
Existiam abacateiros. Aliás, como tinha abacateiros ali. O abacate é uma fruta muito especial. Ele nasce pequeno, como os meninos, e vão ficando adultos, maiores. É diferente das outras frutas que nascem verdes e com a idade passam a ser amarelas ou vermelhas. O abacate não, ele nasce verde e verde morre. Nascem pequeninos como nós. Era uma diversão pegar aqueles abacatinhos. Eram nossos Legos. Bastava um paliteiro e vários abacatinhos. Fincando o pauzinho nas frutas e ligando uma das outras construíamos até naves especiais. E elas voavam …
Outra coisa diferente na minha cidade era que os muros nunca estavam nus. Sempre vestidos de heras. Elas abraçavam o concreto como um papel de parede e cuidavam de enfeitar aquelas paredes frias. Muros revestidos de heras, em nenhum lugar existiam tão lindos como os de lá. Poderia até parafrasear Castro Alves e dizer que na minha terra tinham muros onde as heras iam abraçar …
Naquelas montanhas recheadas de ouro, que infelizmente alcançavam apenas uns, mas que mantinham vários, existia muita grama. Grama como tapetes naturais que a gente adorava esfregar as costas. Grama que fazia correr solta nossas bolas de meia nos jogos de bente altas. Esse jogo, acho eu, só existia na minha terra. A gente armava duas pirâmides com três gravetos cada uma. O objetivo era arremessar a bola de meia pra tentar derrubar a casinha do outro lado. Para se defender, o time tinha que chutar a bola que vinha em sua direção para bem longe. Enquanto o menino que arremessou fosse buscar a bolinha, o outro time corria em torno das casinhas. Acho que o beisebol é o esporte que mais se parece. Já vi beisebol na televisão, mas é muito mais modorrento, enfadonho.
Queimada era outro esporte que a gente praticava muito, no chão de concreto do Grupão. Uma escola linda, enorme, com um pátio interno como convinha a todas às construções daquela época. As paredes eram bicolores. Sempre tinha um barrado, como se cortinas fossem. O pé direito das salas, muito alto, nos levavam ao céu. Que lembranças boas tenho do Grupão. Imponente, plantado sobre um platô, como se olhasse a cidade lá de cima. Ao seu redor, centenas de meninos, todos iguais, de bermudas azuis e camisas brancas engomadas. No Grupão, todas as crianças eram iguais.
As professoras, nossas mães de aluguel a nos ajudar a preencher as primeiras linhas, a entender o contorno de cada letra. Que saudade de Dona Idelzira, fingindo ser brava e exigente, mas um doce de mãe. Cuidava de nós como se filhos fossem, e assim, filhos éramos. Serei eternamente grato a D. Idelzira, do pouco que sei, muito foi ela quem me ensinou.
Lembro que a gente guardava nossas moedas num cofre que imitava um foguete, na esperança não de ir até a lua, mas de poder comprar uma bola nova. Ali, as bolas erram marrons, não eram brancas como hoje.
Nova Lima, que saudade de você, menina debutante que hoje é mulher feita e que não perde, malgrado algumas tentativas, o seu eterno charme. Ladeiras infiéis aos pés. Essa cidade que só tem descidas, como dizia minha vó. Que castigava as pernas, mas, nem assim, éramos felizes, completamente felizes.
Hoje, nas minhas idas a Nova Lima, já na descida da Cemig, um bafejo de juventude entra pela janela do carro. Sempre desligo o ar condicionado e sigo de vidro aberto. Abro as narinas e inundo a minha alma de saudades realizadas.
Essa é minha terra, da qual sempre espero um beijo roubado, um carinho escondido, uma piscadela, um olhar de soslaio, um sorriso de namorada. Te amo!
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Peter Rossi, o neto. Lembro-me de seu avô e de como ele era feliz em Nova Lima, sempre de muito bom humor. Acho que antes de você ele já identificara NL como boa terra para sua família. Peter sua peça literária sobre NL é sui-generis, o primeiro trabalho expresso sob a lembrança da infância. Parabéns! Walter Taveira.