Categories: Taís Civitarese

Ambulatório trans

No ano passado, acompanhei por algumas semanas o Ambulatório de Diversidade de Gênero da Fhemig, popularmente conhecido como Ambulatório Trans.

Lá, crianças e adolescentes trans têm um espaço para conversar sobre suas angústias, desejos, dores, expectativas e ansiedades. A função do serviço é basicamente de acolhimento e escuta. Ainda assim, por diversas vezes, ele foi ameaçado de fechamento pelo governo estadual. Os motivos alegados são muitos e a maior parte deles originados de profundo desconhecimento sobre a causa.

A ideia de uma criança ser trans pode soar deveras incômoda. Ela atinge fortemente simbologias de cunho moral, político-partidário e religioso de grande parte da sociedade. No entanto, essas crianças existem independentemente de qualquer convicção alheia. E sofrem muito. 

Já foi dito que haver um ambulatório para acolhê-las seria como estimular um comportamento transitório ou de modismo entre adolescentes. Ou praticar a temida ideologia de gênero. E tudo isso poderia até ser vagamente considerado se não fosse tão longínquo e distante da realidade.

A todos os que pensam assim cabe o convite a se deparar com uma dessas pessoas. E a ouvi-las.

As crianças chegam ao serviço por demanda própria ou encaminhadas pela rede de saúde pública do SUS. Muitos vêm com o diagnóstico de disforia de gênero (sofrimento por não se reconhecerem no gênero para o qual foram designados ao nascimento). A maioria deles traz histórias de sentimentos de inadequação desde a infância. Com idades muito jovens, relatam ter tido desejos e identificação voltados às práticas mais comuns ao gênero oposto.

Nesse momento, tem-se a oportunidade de descortinar todas as infinitas camadas de preconceitos previamente cunhados e de se exercitar um dos mais profundos níveis que a empatia pode atingir.

A primeira paciente que ouvi tinha 13 anos. Ela nasceu com genitais masculinos. Veio acompanhada do pai, que a trazia gentilmente pelas mãos. Sua vulnerabilidade era comovente. Por sorte, era aceita por sua família e sobretudo, amada. Raridade entre os pacientes ali. Todo o seu desejo manifesto era o de apenas ser o que era.

Uma outra, de 14 anos, ansiava pela cirurgia de redesignação de genitália, a qual só é permitida no Brasil após os 18 anos. É muito importante esclarecer que, em uma pessoa trans, apesar da identificação com o gênero oposto ao de seu nascimento, a redesignação nem sempre é desejada ou necessária. É uma escolha individual. 

Havia um paciente que não se identificava com um gênero binário e escolhia um nome ambíguo para ser chamado. Alguns vinham sozinhos às consultas enquanto outros, acompanhados de seus familiares ou namorados(as). Suas histórias de auto-aceitação nunca eram fáceis. Muitos enfrentavam bullying nas escolas e preconceitos dentro de casa e em sua comunidade, com grande dificuldade de serem chamados por seus nomes sociais.

Não é fácil compreender uma circunstância que, por vezes, nos pareça tão distante. Mas é obrigatório respeitar. Por mais que algumas ideologias rechacem a existência desta comunidade, sejam de direita ou de esquerda (como o feminismo radical, abolicionista do gênero como a causa de toda a opressão das mulheres), as pessoas transgênero não irão desaparecer. Elas existem e muitas delas são crianças!

A meu ver, o que sobrepõe-se a qualquer convicção ideológica é a empatia e o respeito ao sentimento do outro. Não acredito ser possível quantificar as dores humanas. Serei eu a dizer que como o gênero supostamente não deveria existir, meu colega não pode identificar-se com ele? Ou se minha concepção moral ou religião não as aceita, essas pessoas são erradas ou desviantes? Repito, elas existem! E um grande número delas são crianças. 

As questões comentadas aqui são complexas. Parte de sua abordagem, no entanto, pode ser simples. Maior do que a compreensão, a aceitação ou o entendimento está o respeito. Ele é o primeiro passo a ser dado diante da diferença. Seu sucessor natural é a empatia. E ela, uma vez desenvolvida, pode funcionar como um lastro para que as barreiras do preconceito se rompam e para que, verdadeiramente e eventualmente, se abrace de forma genuína esta causa.

 

Blogueiro

View Comments

Share
Published by
Blogueiro

Recent Posts

Ainda pouca mas bendita chuva

Eduardo de Ávila Depois de cinco meses sem uma gota de água vinda do céu,…

14 horas ago

A vida pelo retrovisor

Silvia Ribeiro Tenho a sensação de estar vendo a vida pelo retrovisor. O tempo passa…

2 dias ago

É preciso comemorar

Mário Sérgio No dia 24 de outubro, quinta-feira, foi comemorado o Dia Mundial de Combate…

2 dias ago

Mãe

Rosangela Maluf Ah, bem que você poderia ter ficado mais um pouco; só um pouquinho…

3 dias ago

Calma que vai piorar

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Depois que publiquei dois textos com a seleção de manchetes que escandalizam…

3 dias ago

Mercados Tailandeses

Wander Aguiar Para nós, brasileiros, a Tailândia geralmente está associada às suas praias de águas…

4 dias ago