Outro dia, por volta de uma hora da tarde, fui deixar meus filhos na escola, à pé.  Logo que adentraram o portão, virei-me para subir a rua, quando escutei uma voz chamar bem atrás de mim. 

Era um ancião que aparentava ter cem anos, com pouquíssimos dentes na boca, a cabeça parcialmente coberta por fios ralos e brancos, a pele bastante queimada pelo sol e uma postura encurvada que lhe impunha um caminhar a quase noventa graus. Tinha o olhar entristecido, usava uma bengala e carregava uma pequena bolsa e algumas sacolas.

Ele pedia ajuda para comer e, num gesto automático, permeado pelo misto de fuga, vergonha e negação, falei-lhe que “hoje, não tinha”, uma vez que saíra de casa carregando somente a chave e o celular. Com a voz lamuriosa, ele disse: “Estou vindo do hospital. Pedi um prato de comida lá e me falaram assim: ‘Pede pro Lula!'”. Ao ouvir aquilo, senti um tipo de engasgo embargar minha respiração.

Virei-me para aquele senhor em estado decrépito, curvado, faminto e por alguns segundos pensei em que tipo de pessoa, que tipo de protótipo de ser humano diria algo assim para alguém em semelhante estado. Que tipo de rancor sórdido acoplado a uma desumanidade violenta poderia motivar a mente de alguém a ser tão completamente desprovido de compaixão ao ponto de, além de não ajudar, ainda tripudiar em cima de uma pessoa em profundo estado de necessidade. Que tipo de ignorância, cegueira quanto ao outro, burrice propriamente dita e todas as outras sortes de desqualificações humanas poderiam ter feito morada sob a pele de semelhante criatura, nas imediações de um hospital, ao proferir aquelas palavras. Por sorte, estávamos perto de um self service, onde pude fazer uma marmita para ele e entregar-lhe, junto a um copo de água. Ele me agradeceu, mas pensei se não era eu quem deveria lhe pedir desculpas.

Perguntei-lhe se tinha sido um médico quem lhe disse semelhante frase e ele respondeu um pouco confuso que era um rapaz do hospital. Ele disse em tom de choro, com sua dicção de senhor bem idoso: “Tem gente que não sabe o dia de amanhã.”

E respondi: “Tem mesmo…”.

 

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