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MAR DE MORROS

Raniere Sabará

Certa vez, na praça do vale, encontrei na ponta do corcovado uma carta com destinatário em branco. Quase não havia palavras e em poucos rabiscos o destinatário somente dizia: “que o futuro nos cerque do não-saber viver”. Imaginei infinitas possibilidades que aquela frase poderia significar. Não sei ao certo o que me chamara atenção, mas, a vagueza do destinatário em parafrasear um vocabulário incrédulo, incalculado e sem pretensão, me tapou os ouvidos e a boca para escutar o que o coração havia de dizer.

Por ventura, um corpo-ser, com pouco mais de meia idade, sentou-se ao meu lado, algo típico das cidades do interior, para contar casos do seu cotidiano. Lua, seu nome. Por ironia do acaso, Lua, havia tido um dia em que seus olhos diziam por si só. Cansaço, como o meu. Começou a expelir lanças em contraposição. Reclamava do trabalho e dos desafetos. Dizia que seu cansaço era por pensar demais. Pensava tanto que pouco vivia.

Não muito tempo após, Lua, se vai e quem volta a pensar sou eu. Pensei, porque, naquela conversa, alguma parte de mim entendeu que a carta que eu havia tocado pouco tempo antes, me trouxe a mensagem do dia. Mensagem essa que não sabia decifrar. Talvez, fosse para ser assim.

Afincamos em mar de morros, sensações e pensamentos, uma cronologia da maneira como devemos estar postos ao mundo e ao outro. Pensamos e nos sujeitamos a estarmos sempre atentos, produtivos e dados ao sistema. Sistema esse que nos diz como viver em patifaria na sociedade do cansaço. Como se moldar e comportar, esquecendo-se da solicitude de acolher as não respostas que a vida tem para dar. Tudo deve ser presumido. Racional. Metódico.

E se assim, o presente nos diz como ser, eu clamo para que, de fato, o futuro nos cerque do não-saber viver. Que não saibamos o dia de amanhã. Que não esperemos respostas para as imprevisíveis possibilidades de encontros. Que não acordemos sem antes adormecer. Que, algum dia, possamos viver sem saber o que será. Que o futuro seja a imensidão das profundezas dos oceanos e dos alfaiates da ribeira. Mar de morros. Bicho-gente. Bicho-ser.

*

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