Você gosta de carnaval? Essa é a pergunta que tenho tentado responder há décadas. E a cada ano tenho uma resposta diferente.
De criança, fantasiada de odalisca, she-ha ou pirata, me divertia à beça com meus amigos jogando serpentina e confete colorido no pátio da escola. Até que a iminente adolescência e uma fantasia de indígena não desejada (não por ser politicamente incorreta, mas por deixar meu corpo excessivamente exposto) me roubaram a diversão e o sentido da comemoração.
Diferente de muitas, não fui uma adolescente típica, dada a festas. Era mais para uma garota nerd e tímida, que beirava a rabugice. Nessa fase, considerava o Carnaval uma grande bobagem, uma perda de tempo. Como Clarice Lispector, nessa fase da vida, creio que alegria dos outros me assustava um pouco. Mas gostava do feriado prolongado e, às vezes, de assistir aos desfiles das escolas de samba pela televisão.
Um pouco mais velha, comecei a experimentar algum baile em algum clube do Belo Horizonte, época em que a cidade ficava às moscas. Podia-se andar literalmente pelado pelas ruas, adotando o nu como fantasia sem ser notado. Nessa época, expandi minha ideia de Carnaval para além de uma festa apelativa para uma vivência mais popular, histórica e política.
Mas, definitivamente, foi a maternidade que me restituiu o prazer do Carnaval. Adorava fantasiar a minha pequena: bruxa, fada, princesa, abelhinha, bailarina… Laura teve todas as fantasias possíveis, todas harmonizadas com glitter e tinta spray para o cabelo. Frequentamos muitos bloquinhos infantis, da Pampulha ao Santa Tereza.
A pandemia da Covid-19, novamente nos privou da festa por quase três anos e a promessa do grande Carnaval do amor se concretiza agora em 2023. No fim de semana de pré-carnaval fui almoçar na casa da minha mãe, no bairro Floresta. A dificuldade de chegar lá, pelos inúmeros desvios no trânsito, me mostrou o bairro em ritmo de esquenta para a festa. Gradis cercando os canteiros, placas e faixas indicando os trajetos dos foliões, banheiros químicos nas calçadas também revelaram a expectativa festiva para o feriado.
Ao final do almoço, decidimos ir à pé até a sorveteria para nos deleitarmos com a sobremesa gelada naquele dia quente. Um morador de rua, figura franzina, seca, de andar trôpego, se aproxima da nossa mesa e aborda minha cunhada, pedindo dinheiro ou qualquer coisa que não conseguimos decifrar. Ela meneia um “não” com o rosto, sem prolongar o contato.
Insatisfeito, ele se aproxima de mim, posso sentir um cheiro forte, de tiner ou cola de sapateiro. Ele insiste no pedido, o que eu novamente recuso: “Não tenho, moço”. Visivelmente ele se irrita com a negativa e, sem hesitação, dispara uma cusparada na minha direção, atingindo meu braço, meu cabelo, meu sorvete de doce de leite e o picolé de açaí da minha filha. Fico momentaneamente sem reação, mas ao me dar conta do acontecido, volto para casa para me higienizar com água, sabão e álcool gel. Pela falta de dentes na arcada superior, acho que eram apenas 3 separados por espaços vazios, o ranho não veio em jato único, mas disperso em 180 graus, pulverizando perdigotos em uma grande área.
Ah, e se gosto de Carnaval?
Esse ano não.
Referência:
– Restos de Carnaval – Clarice Lispector
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