Posto que o ano de 2023 será de muito trabalho, trago algumas reflexões sobre o tema que o Forúm do Campo Lacaniano de Belo Horizonte, do qual sou membro, debruçará no primeiro semestre desde ano, talvez além – Angústia. Afeto que desafia o sujeito e a clínica psicanalítica. Trago algumas reflexões que apresentei na Jornada de Cartéis de 2022 em Belo Horizonte.
A angústia foi pesquisada e relatada por dois psicanalistas/médicos Freud e Lacan. Eles apontaram um outro saber – o da linguagem do inconsciente e de como ela manifesta no corpo do falasser. Com o avanço dos discursos da ciência e do capitalismo no século XX, a causa das manifestações descritas nos manuais médicos como distúrbios e síndromes foi escamoteada, e a angústia não tem lugar nesses discursos. Contudo a psicanálise insiste em esclarecer o seu saber.
O corpo para psicanálise e ensinos de Lacan é banhado pela linguagem. Corpo como inscrição do inconsciente estruturado como uma linguagem, metaforizando e metonimizando as mensagens advindas do Outro. Contudo algo além da mensagem fica como enigmático, pois a linguagem antiga: a lalíngua – o balbucio do bebê, “aparece no corpo e em seus tropeços... Pode reproduzi o traumatismo do primeiro encontro entre o que foi falado e o que foi ouvido e em seguida lalado. Essa reatualização do encontro com lalíngua não ocorre sem angústia, inibição ou novos sintomas” – nas aspas são menção do teórico psicanalista Antônio Quinet.
Outra psicanalista, Dominique Figermann esclarece que os DSMs – Manual de Diagnóstico e Estatística dosTranstornos Mentais, apenas tentam classificar em fenômeno, aquilo que quebra a homeostase da vida. Distúrbios, transtornos, síndromes e etc, são relatados “com uma proliferação de detalhes que fazem perder de vista a estrutura única do ser falante, que lhe proporciona angústia e sintoma como marca distintiva de sua humanidade, diferenciando-o, assim, radicalmente de todos os outros animais vivos.”
Angustia experimentada no Eu desde templos primórdioscomo junção do Real e Imagináio, conforme Freud e estudado por Lacan. “Ela tem a estrutura temporal do instante, mas promove uma experiência de abismo temporal que pode se manifestar como uma sensação de ‘petrificação motora”. E assim Freud já a descrevia no século XIX como “Ataque de angústia” – sentimento de angústia, sem nenhuma representação associada e que pode estar ligado ao distúrbio de uma ou mais funções corporais …e, em suas descrições o sentimento de angustia frequentemente recua para o segundo plano. E, Lacan esclarece no Seminário 10 que a angustia é um afeto não recalcado. “Isso, Freud o diz como eu. Ele se desprende, fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram”.
Dominique esclarece que “o pânico revela o que a fobia e sua fuga escamoteiam”. Como Freud deixou claro, a fobia elege um objeto – exemplo do cavalo para o pequeno Hans(criança paciente de Freud). E, Lacan avança: “a verdadeira função da fobia, que é substituir o objeto da angústia por um significante que causa medo”. Pois, insiste Lacan no Seminário 16: “ante o enigma da angústia, a relação de perigo assinalada é tranquilizadora”. Em “A Terceira” ele traz: “a angústia é justamente algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos advém de nos reduzirmos a nosso corpo”.
A autora citada, aponta o aspecto artificial e exagerado das crises de pânico, encobrimento imaginário do real da angústia… E ainda questiona: ‘Podemos formular a hipótese de que as crises de pânico seriam o efeito de uma derrapagem entre real e imaginário, ao qual a fobia remediaria produzindo um ponto de sutura da estrutura entre real e simbólico, nó fundamental da substituição do significante ao rastro de gozo outro no corpo?”. E, observa que na clínica do psicanalista: “a angústia exacerbada no pânico proporcionafrequentemente um acesso único a esse “íntimo/êxtimo” de si mesmos, é difícil fazê-los falar do desamparo, pois ficam muito ocupados em narrar, nos mínimos detalhes, os efeitos pressentidos, cuja volta imaginada representa o máximo do terror, o que, na maior parte das vezes, produz desacelerações brutais de suas ascensões egóicas vertiginosas.”
Para Lacan a angústia é o afeto que não engana, “precisamente na medida em que todo e qualquer objeto lhe escapa. A certeza da angústia é fundamentada, não ambígua. A certeza ligada ao apelo à causa primária é apenas a sombra dessa certeza fundamental.
Soller no prelúdio Tratamento do Corpo aponta que, de Freud à Lacan, a psicanálise se fez leitora da época e de como seus corpos socializados desenvolveram. “… toda a teoria analítica, de fato, diz respeito ao desamparo onde estão esses corpos encurralados nos laços sociais, para satisfazer os sujeitos. Esse era o caso em 1900, e é ainda em 2020. É o que não muda. O que dizer, então, dos efeitos próprios do capitalismo e da remodelação dos laços sociais que ele gera?”
Desamparo, significante que aparece na clínica e desdobra o que Lacan continua a referir sobre o enigma do olhar do Grande Louva-a- Deus: Che vuoi? Que queres? Que quer ele de mim? Que quer ele comigo? “Mas também de uma interrogação em suspenso que concerne diretamente ao eu: não Como me quer ele? Mas: que quer ele a respeito deste lugar do eu? Respostas ao enigma que remeteram a não satisfação, a incompletude e ao desamparo do sujeito que busca respostas para o Outro.” Contudo adverte “em se tratando da angústia, cada malha, se assim posso dizer, só tem sentido ao deixar o vazio em que existe a angústia”
Estamos em 2023 e desde Freud (1900) nossos pacientes nos procuraram porque angustiam e nos põem a trabalho.Na singularidade de cada vida, de cada experiencia de corpo e linguagem, seguimos construindo a clínica psicanalítica.
Referência bibliográfica
FINGERMANN, D. (2016). Pânico e fobia: Enlace e desenlace da angústia Comunicação de uma pesquisa em curso. Revista De Psicanálise Stylus, (32), pp. 89-98. https://doi.org/10.31683/stylus.vi32.624
FREUD, S. (1894-95). “Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia” In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, s/d (versão eletrônica).
LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia. texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final Angelina Harari e preparação de texto André Telles; tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Zahar, 2005 (p. 18-24, 241)
SOLLER, C. O tratamento dos corpos em nossa época e na psicanálise. Prelúdio, 2019
QUINET, A. O inconsciente teatral – psicanálise e teatro: homologias, 1ª.ed. – Rio de Janeiro: Atos e Divãs, 2019.
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