O que você faria se, do apartamento ao lado, exalasse um cheiro de putrefação constante, somado a gritos de horror na madrugada e movimentação suspeita? A vizinha, pobre e preta, chamou a polícia. Duas, três, quatro, dez vezes. Em nenhuma delas, a denúncia foi sequer registrada. É que o suspeito é branco, loiro, olhos claros. E o país são os Estados Unidos da América, onde pretos são silenciados por um Estado racista.

Certa feita, o sujeito branco acabou sendo preso. Nem mesmo a polícia racista pôde fechar os olhos: foi flagrado na porta de casa com um menor semi-inconsciente, que tentava fugir das garras do psicopata que o drogou. A vítima, um imigrante chinês. O ofensor, já sabemos: branco, loiro, olhos claros. Na audiência, o juiz não pôde — leia-se, não quis — compreender as queixas do pai do rapaz violentado, devido ao forte sotaque chinês. Para se evitar o constrangimento na Corte, o magistrado liberou o réu, sem maiores consequências: “você não tem perfil de criminoso, meu filho”, afagou o juiz.

Demorou mais alguns anos para finalmente a polícia entrar no apartamento do homem branco, loiro, olhos claros e encontrar, na geladeira, duas cabeças congeladas, e dezenas de corpos parcialmente derretidos dentro de um tanque cheio de ácido, que ficava em seu quarto, ao lado da cama. Jeffrey Dahmer é o nome dele. Branco, loiro, olhos claros… e canibal. Matou 17 rapazes — pretos, gays, imigrantes — entre 1978 e 1991, em Milwaukee, Estados Unidos. Comeu, com garfo e faca, parte deles.

Nossa, mas que aberração, um monstro, você pode estar pensando. Mas não seria exatamente isso que somos? Uma polícia que mata um negro a cada hora. Um presidente que se gabou por “pintar um clima” com garotas venezuelanas, e que angariou 51 milhões de votos no último 02 de outubro. Um país que admite ter 30 milhões de brasileiros — em sua devastadora maioria, pretos — passado fome. Um Congresso Nacional onde a voz de pretos, mulheres, indígenas, LGBTI+, são abafadas por ruralistas, fascistas, religiosos, militares, todos brancos. Homens brancos por trás de grandes empresas que exploram o trabalho de gente pobre e preta. E um Estado que tributa o patrimônio desse grande homem branco rico da mesma forma que tributa o salário do trabalhador pobre e preto. Uma sociedade construída nos pilares da supremacia branca e que se alimenta de carne negra.

Dahmer somos nós.

Guilherme Scarpellini

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