Victória Farias

Existem vários livros na biblioteca que estão sem capa. Bom, não que eles estejam “sem capa”, isso seria como andar por aí sendo uma alma sem corpo, mas estão sem capa, da forma como convencionalmente entendemos isso. Existe uma espessura dura que se coloca entre as folhas finas e a estante, mas nela não se lê nada. Poderia dizer que são livros de mistério, e não poderia pensar alguém que dissesse ao contrato, já que as publicações não são divididas por secções e qualquer um poderia ser, mas um livro de mistério não se daria ao trabalho de ser misterioso per si. Ele precisa convencer, dizer demais mesmo não dizendo nada para que alguém o escolha. Mas esses livros sem capa, francamente, não pretendem ser escolhidos. A falta de alguma coisa que os apresentem ao mundo é ao mesmo tempo um fardo e uma graça. Ele tem sempre e infinitamente um lugar reservado para repousar entre os livros que vem e vão. Mesmo que sua história não seja conhecida nem proclamada pela posteridade, eles não parecem se preocupar muito com ela: afaste-se de mim, o mundo e seu fim! eles parecem dizer as criaturas finitas que estendem os dedos finos e esqueléticos para tentar tirar alguma coisa sobre o livro folheando as primeiras páginas. “Finito” para ele é um xingamento. Uma palavra morna que nasce e morre muito antes daqueles que a inventaram. Assim como o tempo que se perde pelos seres finitos tentando descobrir qual livro escolher dessa vez. Assim, quando aquele pequeno mundo termina e eu volto para a casa com alguma nova ficção científica – com capa – na mochila, penso que vários livros na biblioteca estão sem capa, e se você chegar bem perto, existe a chance de ouvi-los dizer: afaste-se de mim, o mundo e seu fim!

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