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Presentes que me dou: O Despertar (1)

Mais um domingo de céu azul e sol brilhante. Mais um dia de isolamento social, de permanência em casa com muito medo da virose que, a cada dia, faz milhares de vítimas. Sem poder abraçar ninguém com medo de nos infectarmos. Beijar então, nem pensar. Procuramos ao máximo distanciar-nos uns dos outros, nos resguardando e resguardando o próximo também. 

A pandemia tem feito de nós seres muito diferentes do que éramos. Uns poucos, buscando o resignificado de tudo, tentando mudar para melhor; outros experimentando o fundo do poço, intensas situações de estresse, de ansiedade, de tristeza, de agonia, de mais pobreza, de fome. Ninguém nunca mais será igual ao que era antes! Seria este o objetivo deste vírus devastador? Vai saber…

Acordo e abro os olhos. Sei que vivemos há quase um ano numa reclusão involuntária, mas necessária. Coloco-me inteiramente presente no aqui e agora. Tenho exercitado disciplinadamente esta conexão e, confesso, tem-me feito muito bem. 

Estou em minha cama. Meu colchão, com o top pillow que me dei de presente. Uma simples camada de nylon(?), traz às minhas noites um conforto indescritível. Sinto a textura do lençol. Sinto a temperatura do meu corpo, em contato com o algodão macio. Ainda de olhos fechados, me viro de lado e – atenta a tudo que me toca – sinto a maciez do travesseiro em que me deito, e outro que posso abraçar ou não. Vivo intensamente este despertar. Curto o meu corpo. Exploro as sensações em minha pele. Inspiro e expiro. 

Espreguiço gostosamente enquanto bem-te-vis cantam lá fora, em uma árvore próxima à minha janela. Ouço aquele canto e conto: dezoito vezes e o pássaro continua lá, saudando a manhã que se inicia. Quero, eu também, saudar o dia que surge. Será muito diferente do que eu gostaria de viver e justamente por isto, preciso fazer dele um dia especial. O melhor dia que eu puder proporcionar a mim mesma. 

No caminho para o banheiro encontro os três gatos que chegam pra me desejar bom dia. Na verdade, o que eles querem é um carinho. Afago o pescoço de cada um deles. Adulo os três. No banho concentro-me novamente no aqui e agora. Que bênção dispor de um banheiro confortável, com água, muita água e quente! Impossível não pensar nas milhares de pessoas sem acesso a este prazer tão corriqueiro pra nós. Escolho a temperatura mais quentinha. Mergulho na delícia daquele banho. Inspiro e expiro. Uso o sabonete que adoro, aquele que deixa, em seu rastro, um cheiro delicioso por muitas horas. Com os olhos fechados, lavo os cabelos, sensação deliciosa. Estou totalmente aqui e agora. Só o barulhinho da água que cai, o resto é silêncio.

O prazer de uma toalha que, efetivamente, me seca. O contato gostoso e macio de um tecido exatamente pensado pra isto: enxugar. Devagar. Sem pressa. Agradecida por ter um corpo sem defeito, nem congênito nem adquirido, cabeça-tronco-membros. Habilidade para me locomover sozinha, sem depender de ninguém. Poder estar sozinha, sem acompanhante, só minha presença me basta. Nenhuma dor, nenhuma doença, nenhum desconforto. No ritmo da minha respiração o agradecimento torna-se um mantra. Repito mil vezes, obrigada! Pela vida, pela saúde, pela cama macia, pelo cantar do passarinho, pelo banho quente, pelos cheiros tão bons, pelos gatos que, deitadinhos no tapete, me supervisionam.

E assim, em casa, a sós comigo, me sinto plena. Feliz. Corpo sadio. Mente equilibrada (dentro do possível). Foco na realidade. Pratico os cuidados recomendados e nos quais acredito. Sem exageros ou neuroses. Passando por momentos difíceis como todos os seres, no mundo inteiro. 

Tudo vai passar, vai sim, mas não vai ser fácil, não vai ser rápido e talvez não seja esta a última vez. Sigamos em frente, sempre, com imensa esperança de que a Ciência vencerá o vírus & suas mutações. 

Afinal, a resiliência é só o que nos restou…

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A série “Presentes que me dou” contém dez crônicas, todas elas vivenciadas em tempos de pandemia. Todas as situações rotineiras adquiriram novo significado em tempos de total isolamento social. Daí esta série, publicada aos domingos pelo Blog Mirante, do jornal Estado de Minas. Escritas por mim, as crônicas são um convite à leitura da nossa realidade, pós/durante a COVID!

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