(Texto original publicado no blog Mirante em 02 de Setembro de 2020, mas, infelizmente, permanece atual, dada a repetição de caso semelhante disseminado na mídia da última semana).
Confesso que estava evitando falar sobre esse tema por causa da polêmica que ele provoca no mundo público. No entanto, também no mundo público, alguém uma vez disse que ficar neutro em situações de injustiça é escolher o lado do opressor (Desmond Tutu).
Na Europa da Idade Média, o suicídio era considerado um crime de alto grau. A pena consistia na execução do cadáver (isso mesmo, matavam quem, tecnicamente, já estava morto); o corpo era arrastado de cabeça para baixo (na tentativa de ser exorcizado), sem direito a rituais fúnebres nem sepultamento em solo sagrado (o que também era quase impossível, dado o predomínio do poder religioso naquela época).
Chegou-se a proibir o direito a oração. Isso mesmo, rezar para um ente querido que resolveu abreviar a vida era considerado pecado. Além disso, a família do suicida era condenada à miséria, pois a pena também consistia no confisco de seus bens pelo Estado. Na Antiguidade, na época do imperador romano Adriano, a tentativa de suicídio era condenada com pena de morte.
Parece absurdo para nós, mas escrevo tudo isso para dizer que, quando falamos de valores e crenças não existe verdade absoluta. Não há regra que seja imutável, mesmo sendo a própria preservação da vida. As verdades e valores sempre mudam e se transformam conforme o desenvolvimento econômico, social, científico, humano e espiritual de uma sociedade.
Essa é uma verdade, quer seja você católico, evangélico, protestante, espírita, ateu, agnóstico; não há como negar. Não fosse assim, estaríamos matando nossos suicidas até hoje e lhes oferecendo pena de morte ao invés da possibilidade de acolhimento e tratamento.
O caso da garota de 10 anos estuprada repetidamente pelo tio, o que resultou numa gravidez de risco e gerou comoção nacional por causa do aborto realizado legalmente, é apenas um ao qual foi dada visibilidade. Estamos cheios de histórias de “Joãos”, “Marias”, “Rayannes”, “Ágathas, “Miguéis”, que sofrem os mais diversos tipos de violências, abusos, carências, abandonos, rejeições e descasos da nossa sociedade.
Se não temos condições de proteger as nossas crianças, se não temos como lhes garantir cuidado, afeto, educação, saúde, segurança, não podemos julgar. Estamos lhes negando a possibilidade de um presente e também uma perspectiva de futuro. E, sinto-lhes dizer, a “nossa” infância já está abortada.
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