Caríssimas e caríssimos, estou temporariamente fora de combate, daí segue um belo texto da amiga e companheira de parte dessa vida. Bia é mãe da minha filha mais velha. Ela, ao lado da Leila Ferreira, Mirtes e Silvio Scallioni, Lúcio Braga, entre outros são responsáveis ter me atirado nesse meio jornalístico. Deleitem!
Elas eram estranhas a nós, meninas. Aquelas mulheres envoltas em pano, muito pano. Pano posto e sobreposto sobre seus corpos, contornando seus rostos e escondendo seus cabelos, pescoços e orelhas. Tínhamos entre 11 e 12 anos e estávamos ali, cercadas por elas, num estágio de estudo que era chamado Admissão: Admissão ao Ginásio – coisa antiga!
Foi quando ficamos conhecendo irmã Clarice. Morena clara, jovem, baixa estatura e sotaque forte: a letra ó se destacando sempre pela pronúncia muito aberta. Era amável e, à primeira vista, pareceu ter o gosto de nos fazer rir. Fomos no seu embalo. O que vinha ou viesse dela constituía matéria para formar em nós, alunas, um conceito sobre a figura ‘freira’. Era nossa primeira convivência, afinal!
E enquanto nossa turma conhecia irmã Clarice, observando sua pessoa, ela ia se transformando de divertida a um tanto… estranha! Sob o comando dela, começávamos a aula com exercícios físicos: balançando vigorosamente os braços, até terminarmos, teatralmente, de mãos postas para a oração que dava início aos trabalhos do dia. “Precisamos submeter o corpo ao espírito”, dizia ela sobre os exercícios.
Nada estranhávamos, a princípio. Tudo era novo. Com o correr dos dias, entretanto, irmã Clarice passou a focar, repetidamente, nas aulas, um assunto que a deixava excitada, falando mais alto e depressa, as bochechas mais vermelhas que de costume. Ela falava… da turma da Jovem Guarda! Irritada, cada vez mais, com as posturas e os cabelos – principalmente com os cabelos – de Roberto, Erasmo e cia.
“Aqueles cabeludos!”, dizia, raivosa. E foi com a repetição do tema e com a obsessão dela em condenar os cabelos grandes dos nossos ídolos – porque eram! – que passamos a desconfiar que algo não ia lá muito bem. Alguma coisa devia estar errada! E desconfiança e cautela passaram a ser nossos guias por um período que pareceu longo demais.
Algumas vezes, ao falar “daqueles cabeludos”, irmã Clarice imitava os trejeitos jovemguardianos e até dançava, frenética, como Roberto e Erasmo e… como Vanderléa! Também prometia amarrar fitas nos cabelos dos rapazes mais badalados do país daqueles tempos: de papel crepom vermelho e verde, uma de cada lado, “fazendo duas marias-chiquinhas”.
Por cenas assim, passamos da desconfiança à suspeita e, logo, toda a turma estudava como falar de assunto tão delicado com outras irmãs do colégio. Estreávamos naquele universo e já tínhamos uma missão!… A saída foi falar com uma ‘martinha’, como eram chamadas as moças que moravam e trabalhavam no colégio em troca de estudo.
Falamos. E, nem tão depressa quanto desejávamos, vieram as providências, precedidas do veredito trazido pela martinha. Irmã Clarice estava doente, precisava se tratar e iria embora. Não sem antes se despedir. Na sua última aparição, ela chegou agitada, anunciando, para nossa turma estarrecida, que nos colocaria – todas nós – num avião. Para viajar com ela. Direto para Goiás. Onde, sob a sua proteção, estaríamos finalmente livres e a salvo “dos cabeludos infernais”.
Quando rezamos, no dia seguinte, com uma nova freira, pela sorte de irmã Clarice, a turma estava duplamente aliviada. Por constatar que era exceção o comportamento que tínhamos testemunhado e por saber que nossa professora seria cuidada. Transcorrido meio século e pouco, acontece ainda de alguém se lembrar daquela nossa anfitriã de primeira hora no ainda hoje velado mundo das mulheres cobertas de pano. Muito pano…
obs: O nome da freira foi trocado, por razões óbvias.
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Freiras eram muito estranhas para os pré adolescentes