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Brumadinho: Sonhos desfeitos

Rosângela Maluf
1. Os bebês

Naquela sexta feira, Norma chegou em casa por volta das dez horas da manhã. Na mão trazia o resultado do exame que apanhara no laboratório antes de voltar para sua cidade. Ainda no elevador, abriu o envelope e teve então a certeza de que estava grávida. O resultado do exame impresso no papel: Positivo. Louca para contar ao marido, pegou rapidamente um táxi, mas antes passou no mercadinho. Sua mãe atendia à dona da pousada. Cumprimentou a dona Célia e falou “bom dia, mãe”. Ficou esperando atrás do balcão. Queria contar para dona Eulália antes mesmo de falar para qualquer outra pessoa; afinal a mãe já cobrava, há um bom tempo, a encomenda de um bebê! E agora, o netinho ou netinha, estava a caminho – com seis semanas.

Olhou mais uma vez para o celular, na dúvida se ligava ou não para o Josias. Talvez uma mensagem no what’s. Melhor não. Melhor esperar até o meio dia. “Ele vem almoçar e aí eu mostro o exame e a gente conversa”. Passou a mão na barriga. Tirou o tênis que apertava um pouco e se deitou. Começou a programar os próximos meses: o enxoval do bebê, a banheirinha de plástico, o bercinho, as roupinhas de cama. E o carrinho? Poderia pegar com a irmã Noêmia; o sobrinho caçula já não precisava mais. Quais as cores das roupinhas que comprariam? Azul? Rosa? Amarelinho e verde claro que serviriam aos dois? E os nomes? Elisa? Ygor? Outros? Não via a hora de Josias chegar para conversarem sobre a chegada daquele filho que tanto desejavam e com quem sonhavam há quatro anos. E marcar o ultrassom. “Daqui a pouco tempo já saberemos se é menino ou uma menininha”.

Antes do meio dia Norma deixou a casa da mãe. O almoço quase pronto, dona Eulália insistiu, mas ela não quis comer. Preferia esperar que o Josias chegasse da mineradora. Comeriam juntos o mexidinho que ela haveria de preparar para os dois. “Amanhã, sábado, poderemos sair, comer uma pizza, tomar um chopp e comemorar a boa notícia”, ela sorria enquanto imaginava a situação.
Colocou a toalha florida e pegou no quintal um maço de manjericão. O jarro sobre a mesa perfumava toda a cozinha. Separou os copos, pegou na fruteira as laranjas para o suco, bem na hora em que ele assobiasse, chegando ao portão. Na geladeira havia arroz, feijão e o resto do frango que sobrara do dia anterior. Separou dois ovos. Josias gostava de um ovinho frito por cima do arroz. Lavou a alface, cortou em rodelas o tomate. Picou bem fininha a cebola e guardou a salada na geladeira.

Um barulho ensurdecedor se fez ouvir… E, apesar do susto e sem saber do que se tratava, Norma continuou fazendo o almoço e esperando por Josias. “Santo Expedito, nos proteja”!

2. Uma cadeira de rodas

A vida não era fácil para ele, pobre Edgar. Cuidar do pai doente, sem perspectiva de vida normal, asmático e com a saúde debilitada era sim, um peso enorme. Por mais que se calasse diante dos fatos, lá no fundo, se perguntava se este calvário ainda demoraria chegar ao fim. Fazia o sinal da cruz se redimindo do pecado que pensava cometer: desejar a morte do próprio pai.

Depois da separação, sua mulher voltara para o sul deixando a situação ainda pior. Apesar da sua limitação, o velho ainda conseguia fazer muita coisa, sozinho. Com certa dificuldade, se apoiava na bengala antiga e no seu ritmo seguia, bem devagar. Entretanto, a cadeira de rodas ajudava nos passeios pela calçada, no final da tarde ou quando ele queria ficar só, no quintal, debaixo de uma árvore lendo um jornal antigo, ouvindo rádio e fumando seu cigarrinho de palha.

Naquela sexta-feira, o seu Teco da oficina ligara dizendo que a cadeira ficara pronta. Fez o mais rápido que pode; sabia que o velho precisava muito dela. Durante os dois dias em que a cadeira ficou no conserto, o pai do Edgar pedia alguns favores à vizinha. Dona Lita se oferecia para cuidar do velho toda as vezes que a sua ajuda se fizesse necessária. Missionária, caridosa e vivendo sozinha, residia na casa ao lado, na mesma Rua 8 e se dispunha a colaborar com quem dela necessitasse. Era só assobiar que a Dona Lita corria para ver do que o velho precisava. E, às vezes não era nada. Ele fizera um cafezinho e queria a companhia dela.

Entretanto, naquela manhã, desde muito cedo, uma pane no setor elétrico exigiu a presença de seis funcionários, todos da turma do Edgar. Algumas luzes não se acendiam. Um problema havia no grande painel de controle das esteiras transportadoras de minério. Experiente que era, com mais de quinze anos de trabalho, possuía uma equipe treinada e bem preparada para momentos assim. Mas naquele dia, alguma coisa não ia bem. Algo fora do normal. O que parecia ser um pequeno transtorno se arrastava sem solução. Já passava das 11h30 horas.

Edgar passou um what’s para Dona Lita pedindo que ela avisasse ao seu Teco. Ele não almoçaria em casa. Nem buscaria a cadeira de rodas como combinado. Surgira um imprevisto na mineradora e ele só pegaria a cadeira, depois do trabalho. Edgar desligou o celular, respirou fundo e, mais tranquilo, voltou ao painel elétrico onde estava o problema.

Dona Lita avisou o Seu Teco.

Seu Teco pode, com calma, terminar de lubrificar as rodas da cadeira.

Dona Lita foi ver se o velho precisava de alguma coisa..

O velho teria que esperar até o final do dia quando Edgar voltaria para a casa.

Um barulho ensurdecedor se fez ouvir. E sem saber do que se tratava, Edgar chamou o ajudante perguntando o que era aquilo, de onde vinha aquele ronco. Saíram os dois pra ver o que poderia ser. “Meu Deus do céu, não pode ser”!

3. Um vestido de noiva

Dona Dinha era uma costureira de mão cheia. Fazia maravilhas com os tecidos, era boa modelista. Mesmo sem jamais ter feito um curso, caprichava no corte das roupas. Era cuidadosa e caprichosa. Assim, quando a mãe de Taninha chegou com seu vestido de noiva, guardado há muitos anos, dona Dinha vislumbrou a mágica que poderia ser feita: um vestido lindo.

Taninha acabara de completar 20 anos e, cheia de sonhos, imaginava um casamento de princesa. Queria o vestido da mãe porque trouxera sorte ao casamento dos pais e o Lau, seu noivo, achava que, “se deu certo com os sogros, daria com ele e Taninha também”. Mais alguns metros de cetim foram comprados, mais uns retalhos de renda e mais metros de fita de gorgurão. Finalmente, no sábado seria a primeira prova do vestido. Tânia pediu a companhia da mãe e das duas irmãs, mas o Lau não poderia nem chegar perto, daria azar!

Naquela sexta-feira, Taninha estava especialmente alegre. Ansiosa. Contou para as amigas da cozinha que, no sábado, faria a primeira prova do vestido de noiva. As curiosas queriam saber dos detalhes. Mas, a sete chaves, ela guardava o segredo. Pacientemente colocava as batatas para cozinhar enquanto descascava e cortava aquelas já cozidas. O trabalho na cozinha era cansativo porque tudo precisava ser muito rápido. Mais de trezentas pessoas almoçavam no restaurante da mineradora. Tudo em grande quantidade e pouca gente para ajudar. Mesmo assim Taninha cantava enquanto enxugava o suor da testa. A cozinha já era quente e mais o calor que fazia lá fora! O ar pesado e morno, o tempo abafado.

Um barulho ensurdecedor se fez ouvir. E sem saber do que se tratava, Taninha se colocou na ponta dos pés. Olhou pela janela. Nada viu. Abriu a porta da cozinha. Só o barulho. Um barulhão. “Maria Santíssima, tem piedade”!

4. O Neto

Já fazia tempo que era a encarregada dos Serviços gerais. Tinha com ela uma turma boa que trabalhava na limpeza há mais de 10 anos. Toda sexta feira preparava uma caixa para cada setor. Produtos de limpeza. Papel. Vassoura. Tudo para manter limpas as muitas seções da mineradora. Todas as salas, o restaurante, a cantina, o vestiário, os banheiros, os depósitos e as recepções.
Naquela sexta-feira o entregador levaria a bicicleta que comprara para o neto. Artuzin faria aniversário no sábado. Nove anos. Menino bom, estudioso, obediente, mas levado demais! Sabia que a bicicleta seria uma preocupação a mais para ela e sua filha, mãe do menino. Mas pela alegria de ver aqueles olhinhos brilhando, valia a pena.

Estava curiosa para ver a cara do garoto quando visse chegar o presente. Não tinha como deixar a surpresa para o dia do aniversário: a loja não entregava aos sábados. Não poderia escondê-la na vizinha do lado, ela viajara para a Bahia. A filha ficara em casa. Aquele final de semana era sua folga. Sendo assim, o mais provável é que o neto estivesse por ali quando chegasse o caminhão de entregas. Grandão. Aquele baú enorme, antecipando corações em disparada.

Ela sorria imaginando a cena. E sorria pensando no bolo que faria no dia seguinte. Nas nove velinhas já compradas. Os balões coloridos ainda por encher. Nos canudinhos de doce de leite. Os brigadeiros. Os guardanapos do Homem aranha! Chamou a Lisa e contou sobre o aniversário do neto. Falou entusiasmada sobre a festinha que preparava para não mais do que dez amiguinhos. Todos dali mesmo, da Rua 08.

O sinal do celular tocou. Era a filha dizendo da entrega. O menino enlouqueceu quando viu a bicicleta. Gostou muito que fosse verde e preta, cores do América Mineiro, seu time do coração. “Quero falar com a vó…”

De repente o sinal se perdeu. Ela chegou até à Portaria 1 para ver se retomava a ligação. Sorrindo, queria ouvir o neto falar do presente. Mesmo que a grande surpresa não fora possível, ela ficou contente e sorria de felicidade.

– Alô…Artuzin? Alô…

Um barulho ensurdecedor se fez ouvir. E mesmo sem saber do que se tratava sentiu um aperto no coração e pensou: a barragem. Foi o tempo de olhar para os lados de lá e nada mais. “Jesus amado, não”!

5.

Não houve a comemoração da gravidez, nem as compras de roupinhas de bebê. Não houve sorrisos de alegria pela chegada do filho ou da filha; nada de bercinho branco, com anjo da guarda dependurado e nem luminária de fadas coloridas, girando ao vento. A foto da ultrassonografia, não haveria. Ninguém saberia o sexo do bebê. Qual bebê? A esperança de uma felicidade ainda maior, não veio. A lama levou tudo.

Não houve cadeira de rodas, nova e prontinha para passear pela calçada nos finais de semana. Não houve mais filho cansado, nem houve pai idoso e doente. Não deu tempo para arrependimentos, nem pedidos de desculpas ao velho. Nunca mais a vizinha prestativa. Nem o café na varanda. Nada mais. A lama levou tudo.

Não houve vestido de noiva, nem casamento. Não houve mãe nem irmãs com vestidos novos. Noivo também não houve mais. A costureira, seus tecidos, fitas e bordados também se foram. O horário na igreja, as músicas e as fotos. O álbum do casamento, também não haveria. Não sobrou nada. A lama levou tudo.

Não deu tempo de soprar as velinhas, nem andar na bicicleta nova. Não deu para esperar a avó e pular gritando de contentamento em seu colo quentinho. Pobre neto. Nada de festa. Não houve mesa colorida. A meninada não cantaria o parabéns. Os pacotes coloridos, os presentes, os abraços dos amiguinhos, nada. Tudo virou uma onda só, de lama.

E assim, aquele barulho ensurdecedor continua aqui, atormentando cada um de nós. Soa como bombas em nossos ouvidos. Joga ondas de lama em nossos jardins. Mareja com lágrimas quentes nossos olhos, deixando os corações dilacerados, num luto só. E assim estamos todos, doídos, intrigados, querendo saber o porquê de tudo ter acontecido assim; e, sem nada ter como fazer, seguimos…

6.

Eram 12h33 minutos quando tudo parou.

O barulho ensurdecedor e constante não pode ser identificado. Mas ele veio de uma só vez e chegou em todos os lugares. Aproximou-se devagar, com força destruidora. Cada vez mais perto e o seu roncar cada vez mais forte. As perguntas ficaram no ar. Suspensas entre uma respiração e outra. As pessoas pararam onde estavam.

Ninguém teve tempo de gritar ou de correr. Na verdade, nem se deram conta do que acontecia. Ninguém percebeu a tempo que a gigantesca onda de lama ia chegar. Mas ela chegou e com ela, o fim.

*
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