(Texto original publicado em 23 de Setembro de 2020)
“As paixões são por natureza inconfessáveis. Como os vícios.”
(Francisco de Morais Mendes, em Escreva, Querida)
Leonardo estava de malas prontas. Assentado naquele velho sofá marrom desbotado, esperava ansiosamente a chegada da esposa. Ali teriam a derradeira conversa. Fim. Não dá mais. O desejo acabou. As crianças cresceram. Os projetos não combinam, não há mais encaixe.
Depois disso, o jornalista ficaria alguns dias num apart hotel e, em seguida, partiria para o velho continente. Não podia confessar. Depois de quase trinta anos de casamento, aquele homem, beirando a meia-idade, acostumando com a autoimagem mais desbotada que o sofá, estava apaixonado novamente.
Ele e Cirlene vinham se encontrando secretamente durante o expediente de trabalho havia dois meses, tempo suficiente para elaborarem um plano de fuga. Ele iria na frente, tinha muitos contatos, ficaria temporariamente na casa de amigos, iniciaria um negócio. Ela iria em seguida, viveriam sem limites aquela paixão arrebatadora. A verdade é que a convivência com Cirlene o projetara a um patamar de felicidade e potência que ele jamais experimentara como homem.
O telefone toca:
– Léo, será que tem como você ver se temos ovos na geladeira? Vou passar no supermercado e pensei em fazer aquele suflê de espinafre.
Com o coração na boca, o pensamento acelerado, ele apenas responde sem conferir:
– Sim, tem oito.
Ele recua, hesita. Vai até a porta, dá meia volta. Não, não teria coragem de olhar nos olhos de Simone e dizer-lhe a verdade. Mesmo a mentira mais sincera geraria inúmeros questionamentos, exigiria as mais diversas explicações. Decide escrever um bilhete, que foi deixado em cima do aparador. Sai de casa com a roupa do corpo, carregando duas malas e mais nada.
Este ímpeto de fuga custou ao renomado jornalista de São Paulo a sua valiosa biblioteca, que foi deixada todinha para trás. Simone, algum tempo depois, fez a alegria de um alfarrabista português residente na cidade desde 1950, Seu Vicente, doando-lhe, num ritual de vingança e retaliação, todos os livros do ex-marido.
No início da pandemia, num afã literário e num ímpeto de sustentabilidade, resolvi comprar alguns livros usados em um sebo virtual. Um deles veio direto de São Paulo com a seguinte dedicatória na primeira página: “Para o Leonardo, novo amigo, este livro com suas velhas histórias que continuam a acontecer todos os dias. Com o abraço do Chico – 10/12/96”.
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Belo texto, parabéns.