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O barulho da Fé

Luísa Bahia

Essa semana me peguei saudosa do Jubileu, uma das mais importantes festas da minha terra. Criada no final do Século XIX, a tradição retoma anualmente entre os dias 7 e 14 de setembro, a devoção ao Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, Minas Gerais. Por conta da pandemia e das medidas de segurança sanitária pelo COVID 19, o Jubileu não aconteceu em 2021 e 2020. 

Como bem disse o poeta Wally Salomão, “A memória é uma ilha de edição”. Enquanto cruzo essas memórias da tradição popular, penso no quão importante é para a humanidade, criar a festa e por outro lado, no quanto a festa nos cria, nos inventa, nos faz vivos. As pessoas esperam o ano inteiro para aquele evento religioso, comercial, histórico. É gente de toda parte, subindo o morro ajoelhado, carregando a sua oferta para a sala dos ex-votos, vendendo “promoção e pra mocinha”, comendo churros, recebendo benção do arcebispo, jantando o sopão dos pobres, tocando na roda de violeiros ou namorando na pracinha. 

No pé da ladeira ficavam as comidas: maçã do amor, churros, churrasquinho, milho, bebidas mil. Tinha cigana lendo a mão, cachaceiro cantando de emoção e beata segurando o terço, espantando a danação. No meio do morro ficava o Parque de diversão, que era instalado no terreno ao lado da Igreja São José, onde eu fiz catequese e primeira comunhão. Lembro de ter sido a primeira na fila a confessar, sem nem saber direito o que era pecado. Os brinquedos rangiam tanto, já bastante velhos e enferrujados, que era só a mão de Deus mesmo pra segurar aquela criançada berrando nas alturas. 

Adorava a loja indiana que sempre trazia preciosidades. Parecia que uma nave cigana tinha se instalado ali, na parte de cima do morro. De vez em quando a polícia baixava na ladeira atrás dos vendedores de DVD pirata e calça jeans contrabandeada. Havia missa todos os dias, ficavam lotadas. Existia ainda a fila do beijo, na qual as pessoas esperavam ansiosamente para beijar a fita do Bom Jesus de Matosinhos. É uma fita verde de cetim que ficava embaixo da imagem de Jesus e que t o d o m u n d o beijava. Algo realmente assustador para o nosso tempo. 

Passear no Jubileu era o point e eu sempre ganhava uns trocados dos meus pais, tias e avós pra perambular pela cidade. Em 2001, eu tinha 12 anos e menstruei pela primeira vez. No Jubileu! Minha mãe me deu parabéns e um absorvente. Eu fiquei chateada imaginando que não poderia ir bater perna ou que, se eu fosse, todo mundo ia ficar sabendo, como se estivesse escrito na minha testa “ficou mocinha”. 

Nessa mesma ladeira de devoção e comércio atacado e varejo do Jubileu, acontecem as procissões da Semana Santa, ocasião em que menina, eu participava da confecção dos tapetes de rua. Era um máximo ficar até tarde na rua, com aquela galera, todo mundo sujo de pó xadrez pra pintar serragem e criar aquelas imagens lindas no chão de pedra sabão. Inesquecível o silêncio da procissão, carregando vela e toda aquela fé. Acho que toda pessoa de cidade pequena tem o sino como um ponto de referência na paisagem da vida, um símbolo de pertencimento.

Fecho os olhos e consigo imaginar o teatro da festa do povo. Os ambulantes, os transeuntes, os sinos, as rezas, as músicas, as figuras e suas histórias. O silêncio e o barulho da fé. Anne Bogart disse que “se o teatro fosse um verbo, seria lembrar”. É com os sentidos de artista da teatro que lembro das ruas da cidade em setembro, cheias de tons sagrados e profanos. A rua é uma casa boa de se recordar. Encontro de existências, escola viva! Espero que a gente possa, em breve, ter saúde e leveza, ter fé e ter força, pra brincar juntos nela de novo.

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