“Não se é de parte nenhuma enquanto não se tem um morto debaixo da terra.” – Gabriel García Márquez
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Ana acordou duvidando da realidade. Não que não acreditasse de que aquilo que corria em suas veias não fosse vida, mas carregando uma leve – e insistente – impressão de que tudo a sua volta não sentisse a mesma pulsão. Não podia dizer nada de mais sobre o dia, era uma manhã qualquer de quinta-feira. Mas, antes de sair da cama, havia se perguntado 20 vezes se aquilo era mesmo real.
Era uma sensação estranha. Tinha certeza de que não estava sonhando – já havia experimentado sonhos lúcidos antes, mas nada parecido com aquilo. Olhou pela janela e viu o habitual: o farfalhar das árvores, carros, motos, viaturas. Ainda assim, havia alguma coisa de diferente, algo que não conseguia decifrar, que não se encaixava.
Foi acordada do frenesi por uma mensagem no celular. Era seu namorado, perguntando alguma coisa sobre a faculdade. Não respondeu, colocou o telefone na cômoda e foi fazer o café. Tentava, mas por algum motivo, não conseguia formar a feição dele em sua mente. Desistiu. Devia ser a fumaça da poluição global atrapalhando as suas atividades neurais. Se divertiu com o pensamento. Deveria achar algum jeito de fazer o seu dia menos mórbido, afinal.
Não pensou muito sobre o assunto pelo resto da manhã, embora sentisse alguma coisa no ar. Talvez estivesse doente. Estava morrendo. Chegou a conclusão do diagnóstico: uma falta quase incessante de vida. Embora –percebeu – o pulso estivesse normal, e as maçãs do rosto rosadas como sempre.
O trabalho correu normalmente. Mandou e-mails como se fossem importantes e fez telefonemas que ela secretamente acreditava que mudariam o mundo. Uma pena – pensou. Por trabalhar no administrativo de uma universidade, o único jeito de mudar o mundo era se decidisse mudar o globo terrestre ornamental de lugar em sua sala. Era trágico, mas não se importava – era o que dizia.
Foi na hora do almoço que percebeu que não tinha respondido ao namorado. Depois de um xingamento mental, continuou sua caminhada até a biblioteca na intenção de devolver um livro. O Homem do Castelo Alto, que conta como seria se o Eixo tivesse ganhado a Segunda Guerra Mundial. Uma péssima escolha para uma leitura noturna.
Depois de receber um aceno de cabeça do charmoso Carlos, vai até a prateleira de ficção para recolocar o volume no espaço vazio. Estava de saída quando o título de um livreto de duas páginas e meia em letras grandes, chamou sua atenção. “O Gafanhoto Torna-se Pesado”. Interessante – ela pensou.
Após tirá-lo do lugar, olhá-lo de todos os ângulos e constatar que nunca tinha visto nada como aquilo na vida, leu as palavras iniciais, que eram: “Ana acordou duvidando da realidade. Não que não acreditasse de que aquilo que corria em suas veias não fosse vida, mas carregando uma leve – e insistente – impressão de que tudo a sua volta não sentisse a mesma pulsão.“
O telefone no bolso da sua calça tocou – era o namorado, perguntando se jantariam juntos naquela noite. – Sim, te vejo mais tarde. – Neste instante, se lembrou dos seus olhos castanhos, dos cabelos cortados rente a cabeça, sorriso de canto de boca. Não havia dúvidas.
Recolocou folheto no lugar de origem e saiu pela biblioteca se perguntando se o seu Ifood havia chegado. No final das contas, estava tão preocupada em se achar no que era real que se esquecera do que realmente importava: por Deus, estava faminta!
O Homem do Castelo Alto e O Gafanhoto Torna-se Pesado são, em síntese, a mesma obra. Criada pelo autor PKD, fala sobre como seria se o Eixo tivesse ganhado a Segunda Guerra Mundial, mas exploram um universo dentro de vários, ficando difícil comparar e distinguir uma coisa da outra. Sendo assim, O Gafanhoto Torna-se Pesado é uma parte do universo e uma alusão a obra O Homem do Castelo Alto de Philip K. Dick.
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