Cringe – Imagem: Pixabay
Daniela Piroli Cabral
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Sempre achei fantástica a plasticidade da nossa língua portuguesa. Palavras surgem e são extintas conforme a necessidade de comunicação de uma determinada época. As gírias servem para isso e mais além. Elas são um mecanismo de identificação de  determinado grupo, promovendo a exclusão de outros. Eu, na beira dos quarenta e mãe de uma pré-adolescente, acabei de descobrir que já estou fora. Cronologicamente sou da geração milennial, oficialmente uma das últimas representantes da espécie dos não nativos digitais. Sou cringe, Laura me disse.

Na verdade, eu já me sabia cringe antes de cringe existir. Subjetivamente, sou um pouco vintage, sempre estive um pouco por fora da “minha época”. Já tinha até escrito aqui sobre isso. Tudo bem, fui promovida de uma oldfashioned para cringe na velocidade em que a geração Z inventa seus vocabulários e que a internet viraliza suas bobeiras.

Sou cringe porque uso emoji no Whatsapp, porque gosto de tomar café, porque pago os meus boletos. Sou cringe porque uso o agonizante facebook,  porque visto calca skinny. Sou cringe porque pesquisei o que é cringe no Google.

Sou cringe porque maratonei Friends. Sou cringe porque sei exatamente o significado metafórico da expressão “cair a ficha” e experimentei a penalização por não ter rebobinado a fita. Essa palavra ainda existe? Rebobinar?

Sou cringe porque mamãe me ensinou a cuidar dos tupperware, porque tomei biotônico fontoura e oléo de fígado de bacalhau. Sou cringe porque estudei na enciclopédia Barsa e, aos 13 anos, pedi um videocassete de presente de aniversário. Sou cringe porque já paguei casquinha do Mc Donald´s usando uma nota de um real. Hoje, a verdinha do beija-flor virou lenda e vale cerca de cinquenta reais. Será cringe colecionar cédulas antigas?

Todo esse assunto me fez pensar no que é cringe do ponto de vista do comportamento. Por exemplo, para mim é cringe ir à praia e não entrar no mar. Cringe é não gostar de cachorro. Cringe é não arriscar, se apegar às demais ao conhecido, para não encarar os próprios medos. Cringe é o desperdício.

Cringe é se vangloriar por conquistas sexuais. Cringe é ter filho, mas não ser pai. Cringe é colocar a culpa no álcool e na testosterona. Cringe é a vaidade. Cringe é a velha política. Cringe é ser autoritário, se achar insubstituível, dono da verdade. Cringe é humilhar e assediar. 

Cringe é perder tempo pensando na opinião alheia. Cringe é se comparar com o outro. Cringe é não saber dizer não, não ser honesto com seus próprios sentimentos. Cringe é tentar parecer o que não se é. Cringe é não escutar o outro, não aprender com o sofrimento. Cringe é achar que não precisa se atualizar, é ser saudosista, achar que na sua época tudo era melhor. Cringe é fingir-se imortal. Cringe é negar o passar do tempo e as transformações da vida.

Tem horas que a modernidade me parece bastante antiquada.

Daniela Piroli Cabral

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