Tais Civitarese

Meu pé esquerdo está doendo dentro do sapato. É uma dor em um local específico, que fica junto à articulação do dedão com o primeiro metatarso: o chamado joanete. Mesmo calçada, ele salta aos olhos. Está alto e um pouco vermelho. A cada passo, saúda-me a ironia estranha que só as dores têm para nos lembrarem de que estamos vivos. Ele lateja e finca em brasa enquanto sigo meu caminho. Por mais alinhado que seja o sapato, posso sentir seu deboche cheio de edema e citocinas, não importa!

Minha avó tinha joanete. As pontas de seus pés pareciam dois triângulos gorduchos. Ela calçava trinta e sete, mas usava sapatos trinta e oito. Tudo por causa do joanete, que a impedia de caminhar se o calçado não fosse largo o bastante e se não possuísse um saltinho de dois centímetros e meio “para endireitar a postura”. Tinha de ter. Ela gostava de uma marca de sapatilhas macias com a sola de borracha. E seus tênis tinham que ter um solado espesso e esportivo.

Minha postura é torta e péssima. A coluna, de vez em quando, imita a vida. Será que um saltinho poderia me ajudar? O que uso hoje não está auxiliando em nada. Precisarei tomar uma atitude.

Consulto um amigo ortopedista. Segundo ele, sem uma complicada cirurgia, o joanete não tem conserto. Ou a gente se habitua a ele, ou encara o bloco cirúrgico. Aparentemente, para o meu caso, não vale a pena o sacrifício. 

Reflito por mais algum tempo e concluo que, na verdade, não quero consertá-lo. Ao sentir o beliscão no osso, lembro que vovó sentia o mesmo. Ao olhar meu pé levemente entortado, penso que o dela era parecido. Se nossos pés são os mesmos, posso trilhar os passos que ela não pôde dar. Posso imitar suas pegadas para destinos felizes e desviar daquelas que levaram ao escuro. Posso seguir o caminho contrário das ruas sem saída de sua trajetória. Posso rumar para os portos seguros anos antes desbravados por ela. E posso levar esses pés cheios de pertencimento para a próxima parada da vida.

Essa escolha me parece mais proveitosa do que simplesmente anular esses traços. Cada vez que o sapato apertar, eu me lembrei dela. E terei mais atenção aonde piso. E quando, por fim, descalçá-los, será com uma dose extra de alívio. 

Sim, farei isso. E só poderá ser assim porque ela caminhou primeiro.

*

Curta: Facebook / Instagram
Tais Civitarese

Recent Posts

Ainda pouca mas bendita chuva

Eduardo de Ávila Depois de cinco meses sem uma gota de água vinda do céu,…

11 horas ago

A vida pelo retrovisor

Silvia Ribeiro Tenho a sensação de estar vendo a vida pelo retrovisor. O tempo passa…

1 dia ago

É preciso comemorar

Mário Sérgio No dia 24 de outubro, quinta-feira, foi comemorado o Dia Mundial de Combate…

2 dias ago

Mãe

Rosangela Maluf Ah, bem que você poderia ter ficado mais um pouco; só um pouquinho…

2 dias ago

Calma que vai piorar

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Depois que publiquei dois textos com a seleção de manchetes que escandalizam…

3 dias ago

Mercados Tailandeses

Wander Aguiar Para nós, brasileiros, a Tailândia geralmente está associada às suas praias de águas…

4 dias ago