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Guilherme Scarpellini
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Com a reabertura da cidade, um prédio comercial de alto padrão voltou a ficar movimentado. É um entra e sai dos escritórios, consultórios, lojas; e um sobe e desce dos elevadores lotados. Até as escadarias de incêndio estão apinhadas de gente. O problema é justamente este: gente. Em especial, gente que anda por aí sem máscara.

Três jovens advogados, que conhecem as leis a ponto de dispensá-las sem grandes cerimônias, foram flagrados sem máscara pela câmara do elevador. Quando a porta se abriu, no terceiro andar, Severino estava lá, pronto para repreendê-los. Tascou uma multa neles. E agora os doutores sabem qual é o valor da máscara — 300 paus — e, de quebra, o que é uma convenção de condomínio.

— É a lei do prédio — explicou Severino.

Sem falar no fortão e mal encarado do quinto andar, que passa pela recepção e nem olha na cara de Severino. Quem não dá bom dia, naturalmente, não usa máscara. E o grandalhão segue ostentando o seu queixo quadrado pelos corredores. Deixe-o pra lá, ainda vai encontrar o que é dele. Severino também finge que não o vê.

Mas o doutor Osvaldo, este sim, está na mira de Severino. Não é por maldade, coitado. Médico, você sabe, não tem tempo pra nada. Cuida da saúde dos outros, mas não cuida de si mesmo. E por três vezes o homem saiu apressado do consultório, desceu as escadas sem máscara e olhou nos olhos de Severino só para dizer:

— Vim de escada, que é pro coração ir mais longe.

— Opa, pera lá, doutor. E a máscara? O coração não vai a lugar nenhum desse jeito.

Multa nele; 300 paus.

Na garagem do prédio não é diferente. Severino não raro aparece por lá, pra garantir que os condôminos somente tirem as máscaras quando estiverem seguros em seus carros.

Seja nas áreas comuns do prédio, nos corredores, na porta das salas, nas escadarias ou até quase na calçada. Severino está em todos os lugares, a um só tempo, pedindo que as pessoas usem a máscara, com humildade, gentileza e uma multa de 300 paus.

O fortão do quinto andar, dias atrás, passou pela recepção e não viu Severino. Pela primeira vez, dirigiu uma palavra a alguém que estava atrás do balcão.

— Ih, aquele impertinente do Severino foi embora, é?

— Mas isso já tem muitos anos, senhor Cara de Tijolo! Um ônibus passou em cima dele, no verão de 2001. — respondeu o porteiro, saudoso.

Guilherme Scarpellini

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Tags: Conto

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